A cruz da conversão
“25. Muito povo acompanhava Jesus. Voltando-se, disse-lhes: 26. “Se alguém vem a mim e se não me ama mais que seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. 27.E quem não carrega a sua cruz e me segue, não pode ser meu discípulo.”
Evangelho segundo São Lucas 14.
Não há conversão genuína que não exija um sacrifício. Isso é constitutivo da própria realidade. E o chamado de Cristo à conversão não poderia ser diferente.
Quando um filho compreende que a própria vocação está no sacerdócio ou na vida religiosa, mesmo o mais católico dos pais reluta e resiste. A história dos Santos é, ao menos em parte, a história de filhos que traíram seus pais ou, nas palavras de Cristo, amaram mais a Deus do que à própria família.
Maria aborrece Marta; São Paulo aos Judeus; Santo Tomás de Aquino foi preso e coagido a não se juntar à Ordem Dominicana; São Francisco de Assis rejeitou o sobrenome Bernadone – e todos as posses que implicava – para seguir a vocação que Cristo havia lhe feito: restaura minha Igreja; e São Josemaria Escrivá, de quem se esperava o sustento da própria família, fez voto de pobreza.
Quando, porém, os pais não são católicos? Ou, quando mais, são protestantes ou evangélicos, e veem a Igreja Católica como a mais diabólica das instituições? Creio eu que, hoje, no Ocidente, é nessa situação que as palavras de Cristo relatadas no Evangelho de São Lucas 14, 25-27, são percebidas em sua mais completa gravidade.
O quarto mandamento e o primeiro mandamento, ou, a ordem dos amores na alma
Este site é a prova viva de que essa é uma experiência comum no Brasil. A graça de Deus tem superabundado de tal modo aqui que não se passam duas semanas sem que eu saiba ou conheça algum protestante ou evangélico que está se convertendo ou se converteu. E, vejam bem: falo de mim, que há mais de um ano que mal uso as redes sociais e que vive quase escondido.
Outras pessoas mais ativas socialmente, sem dúvida alguma, veem o agir de Nosso Senhor quantitativamente melhor.
O fato, porém, é que todos que estão em processo de conversão (mais! os convertidos também), enfrentam o seguinte dilema: sendo meus pais protestantes ou evangélicos, posso eu me converter à Igreja Católica – o único Corpo de Cristo – sem que eu fira o quarto mandamento?
Ou, em termo mais próximo da realidade: não é melhor que eu permaneça um “cripto-católico” para que não irrite ou cause desgosto e tristeza aos meus pais?
Ou ainda, em termos evangélicos: “Senhor, permite-me ir primeiro enterrar meu pai” [1], para que não sofra com o desgosto que lhe darei.
A isso Cristo respondeu, e ainda hoje responde: “Mas Jesus disse-lhe: ‘Deixa que os mortos enterrem seus mortos; tu, porém, vai e anuncia o Reino de Deus’.” [2]
Não há muitas dúvidas quanto a isso: Cristo deseja que todos a quem Ele chama à Conversão estejam dispostos a tudo deixar por Ele e pelo Reino de Deus.
E para isso há um fundamento ontológico: a ordem correta da alma é que o homem ame mais a Deus do que ao próximo – seja o próximo quem for. É nisso que se resume toda a Lei Antiga. O primeiro mandamento vem, necessariamente, antes do quarto.
E é precisamente isso que fundamenta o abandono exigido por Cristo nos versículos 25-27 do capítulo 14 do Evangelho de São Lucas:
“25. Muito povo acompanhava Jesus. Voltando-se, disse-lhes: 26. “Se alguém vem a mim e se não me ama mais que seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. 27.E quem não carrega a sua cruz e me segue, não pode ser meu discípulo.”
Evangelho segundo São Lucas 14.
Se alguém não está disposto a abrir mão daquilo que lhe é mais precioso – o amor dos seus familiares e o amor de si mesmo –, não é digno de Cristo. Quem não carrega a cruz de aborrecer a todos pelo Reino de Deus não pode ser discípulo de Cristo.
Essas são duras palavras, que nenhum de nós pode seguir apenas pelas nossas próprias forças.
Não restam dúvidas, portanto: a todos que se encontram na situação de, estando na iminência da conversão ou estando já convertidos, faltando apenas tomar os atos concretos de entrada na Igreja, Cristo os chama para tomarem a própria Cruz, estando dispostos a tudo abandonar, para o seguir.
A consolação da alma e do corpo
Cristo, como lhe é próprio, é mais generoso conosco do que merecemos.
Se Ele apenas nos chamasse ao abandono de tudo por Ele, isso já seria mais do que suficiente para buscarmos forças em Deus para obedecer a essas palavras. Porém, Ele faz mais: a todos que aceitam deixar tudo para o seguir, para buscar o Reino de Deus e a sua Justiça, Ele promete mais do que apenas a consolação da alma. Promete também o sustento, a consolação, do corpo.
A nós, que fomos chamados à conversão ainda jovens; aos que foram chamados enquanto exerciam o pastoreio de alguma igreja, e disso dependiam para sustentar a própria família; e a todos que foram e são chamados por Cristo para se converter ao Reino de Deus ou para viver pelo Reino de Deus, Aquele por meio de quem todas as coisas foram criadas e que tudo sustenta ativamente promete:
“25. Portanto, eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais que as vestes?
26.Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?
27.Qual de vós, por mais que se esforce, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida?
28.E por que vos inquietais com as vestes? Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam.
29.Entretanto, eu vos digo que o próprio Salomão no auge de sua glória não se vestiu como um deles.
30.Se Deus veste assim a erva dos campos, que hoje cresce e amanhã será lançada ao fogo, quanto mais a vós, homens de pouca fé?
31.Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos?
32.São os pagãos que se preocupam com tudo isso. Ora, vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso.
33.Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo.
34.Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado.” [3]
A consolação de nossas almas pelo amor a Deus e a consolação dos nossos corpos pelo sustento ativo de Deus: esses são os bens prometidos à quem quer que, com fé, esteja disposto a tudo abandonar para seguir a Cristo.
E todos que perdem o amor dos homens e os bens terrenos por causa de Cristo têm a certeza de que receberam tudo cem vezes mais:
“27. Pedro então, tomando a palavra, disse-lhe: “Eis que deixamos tudo para te seguir. Que haverá então para nós?”
28.Respondeu Jesus: “Em verdade vos declaro: no dia da renovação do mundo, quando o Filho do Homem estiver sentado no trono da glória, vós, que me haveis seguido, estareis sentados em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel.
29.E todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna”.
30.“Muitos dos primeiros serão os últimos e muitos dos últimos serão os primeiros.” [4]
Conclusão
O fim da vida do homem é amar a Deus. Fim tanto no sentido de finalidade quanto no de efetivo fim, de última coisa que o homem (que assim buscar) fará. A eternidade é restrita àqueles que amaram a Deus nessa vida, pois a eternidade não é outra coisa senão viver diretamente no amor de Deus, na visão do Amado.
A nós que fomos chamados, a nós de quem muito é exigido, Cristo ordena o amor e concede as condições para uma vida em prol do Seu Reino. E, no final, que pode mais qualquer homem querer?
Os bens da terra, os amores da terra, são todos passageiros. Só um bem, só um dom não passa: o amor a Deus. E não passa porque Deus, que é Amor, não passa.
Esse salto de fé, essa cruz que é a conversão, é o pouco que nos é exigido. E o muito que será nos dado, caso tomemos nossa cruz e perseveremos até o fim, é o Summo Bonum: a perfeita participação no amor de Deus, como penhor aqui na terra, e como bem na eternidade.
- Evangelho segundo São Lucas 9,59.
- Evangelho segundo São Lucas 9,60.
- Evangelho segundo São Mateus 6,25-34.
- Evangelho segundo São Mateus 19,27-30.