Newman e o Movimento de Oxford
Há na história do pensamento inglês do século XIX um momento crucial de grande agitação e de profunda e extensa repercussão: é o chamado “Movimento de Oxford”, que, a princípio, simples questão de caráter religioso e teológico, viria a ser, mais largamente, um grande movimento intelectual, atraindo e afetando as mais diversas inteligências e favorecendo o ressurgimento católico na Inglaterra. Este último efeito é, de fato, bem curioso e interessante, porque o “Movimento de Oxford” não visava absolutamente a uma aproximação com o catolicismo, antes consistia num revigoramento do anglicanismo, já contaminado pelo racionalismo do século e estagnado em fórmulas burocráticas e em devocionismo sem alma, tanto que, nos seus começos, partem do próprio Newman ataques contra o “papismo”, como resposta às acusações, feitas às idéias e propósitos dos novos “reformadores”, de estarem a promover uma aliança com a Igreja de Roma.
Mas o fato é que os adversários do “Movimento de Oxford” acertaram, sem o querer, no descobrir que as idéias de Newman e seus companheiros os levariam para o seio da Igreja Católico, como realmente aconteceu a muitos.
Newman não foi precisamente o iniciador do “Movimento de Oxford”, mas, graças à sua personalidade atraente e à sua inteligência e cultura brilhantíssimas, veio a ser o seu chefe ostensivo, contra o qual se desencadearam as fúrias dos adversários duma reforma da igreja anglicana.
Foi John Keble, professor de poesia e discípulo literário de Wordsworth, em Oxford, quem lançou, em 1833, o primeiro brado contra a estagnação da igreja anglicana, no seu famoso sermão “Apostasia Nacional”, que continuava, de certo modo, o movimento espiritual que suas poesias intituladas O ANO CRISTÃO, publicadas em 1827, haviam suscitado. Em torno de Keble, se juntaram inteligências moças e desejosas duma vida espiritual menos burocrática, menos estéril e menos superficial, tais como Wilberforce, Richard Hurrel Froude e seu irmão James Anthony Froude, Pusey, Isaac Williams, cujo poema “A Catedral” teve repercussão igual ao livro de Keble, William-George Ward e outros, inconformados com a estagnação espiritual de sua igreja.
O livro de Hurrel Froude, RELÍQUIAS, publicado após sua morte, foi um reativo fortíssimo, para apressar a eclosão final do movimento reformista, cuja idéia central era uma volta para um cristianismo mais puro, para um cristianismo orientado no sentido de suas fontes históricas da igreja primitiva. Na sua forma combativa e polêmica, o movimento se iniciara com a publicação no “Times”, em 1833, de artigos intitulados “tracts” (pequenos tratados), done o nome de “tractrianismo”, dado também ao movimento de Oxford, escritos por todos quanto partilhavam das mesmas ideias duma renovação da Igreja Anglicana.
O derradeiro “tract”, escrito pelo próprio Newman, iria provocar a reação condenatória por parte da igreja oficial. A acusação de “romanismo”, lançada contra os “tractarianistas”, foi a pedra de toque para que as posições se definissem. O estudo das origens históricas do anglicanismo, dos padres da Igreja, dos teólogos anglicanos do século XVII, levava insensivelmente aqueles homens, para a estrada que conduz a Roma. Inconscientes, talvez, desse irresistível impulso, que o estudo e a reflexão provocavam, os “tractarianistas”, muitos dos quais continuavam hostis à Igreja Romana, sentiram-se chocados com a acusação da igreja oficial.
O movimento aumentara consideravelmente. Em torno de seus iniciadores e, especialmente, da figura de Newman, se congregavam novos elementos: Richard William Church, Faber, Dalgairns, S. Wood, Hope Scott, Manning, mais tarde cardeal, Mark Pattison, Benjamin Jowett, etc. Haviam caminhado bastante no sentido contrário ao do oficialismo religioso. O momento agora era de definições irrevogáveis. William George Ward não hesita: entra para a Igreja Romana. Pusey pára, em meio da estrada; ficará como o fundador duma nova seita protestante, a que mais se aproxima da Igreja de Roma. Alguns outros recuam. Os demais seguem adiante e caem nos braços da Igreja Romana. Entre estes, Newman.
Mas quem era esse homem, que tão fortemente se destacava entre tantas inteligências de primeira ordem do movimento tractarianista? John Henry Newman nasceu em Londres, em 1801, filho dum banqueiro de origem judaico-holandesa e duma descendente de huguenotes franceses. Sua infância foi, pois, passada num ambiente de rigorismo calvinista, herdado e continuado por sua mãe. A leitura diária da Bíblia foi, desde cedo, o alimento espiritual, por excelência, do menino Newman, que revelava, aliás, grande precocidade. Aos 9 anos já iniciava o “diário” de sua vida e compunha versos. E disse que, à força de ler cotidianamente a Bíblia, sabia-a de cor, pelo menos em grande parte.
Em Oxford, onde estudou, foi um devorador de livros. Seu espírito volta-se em todas as direções, indagador e ativo. Estudou línguas orientais, História, poesia, matemáticas e completava seus estudos mais sérios com o cultivo da música, deliciando-se em tocar violino. Seu espírito profundamente religioso, levou-o a seguir a carreira eclesiástica. Em 1824, é ordenado na Igreja Protestante. Pela sua inteligência e pela sua cultura, não tarda em ser aproveitado em cargos de destaque. Em 1826 é nomeado “tutor”, ou preceptor, do Colégio Oriel, de Oxford, cuja direção espiritual lhe fica assim entregue e, dois anos mais tarde, é designado vigário da Igreja da própria Universidade de Oxford.
Sua profunda vida interior fazia-o sentir-se mal à vontade, dentro da estagnação burocrática do anglicanismo. É sua reação começa. Seus sermões se destacavam pela sua agudeza e pela sua persuasão. Não era um orador sacro, com tudo quanto a retórica e a dramatização, o patético e o apaixonamento requerem. Era um conferencista sem gestos, de olhar sempre baixado sobre a Bíblia que comentava, utilizando muitas vezes as pausas como meio de fazer calar mais fundo nas almas o tom algo seco e solene de suas afirmativas. Mas seus sermões tinham um poder persuasivo enorme. Afetavam direta e fundamente as almas. Dir-se-ia, como confessavam sesu ouvintes, que suas palavras se dirigiam a cada indivíduo em particular, tal o conhecimento que tinha da psicologia humana.
Seus estudos e suas meditações aproximaram-no de Keble e dos demais “reformadores” do anglicanismo. Faz parte do número de redatores dos “tracts”. Acusado de romanismo, ainda se defende dessa acusação, atacando a Igreja de Roma. Desencadeado, porém, de todo, o movimento, não mais recua. Continua a sua marcha para adiante e, em 1845, quando o clamor das acusações anglicanas o fizera recolher-se a um vilarejo do interior, onde sua conversão religiosa vai-se processando firmemente, abjura afinal e se declara católico-romano.
Já não era mais professor de Oxford. Seus antigos companheiros de fé, acusam-no de traidor. Os novos, acolhem com suspeita e desconfiança o recém-chegado. Seguindo para Roma, lá se ordena padre, em 1847. Sua vida como sacerdote, quando regressou novamente à Inglaterra, não foi das mais tranquilas. Pelo contrário, teve de sustentar sérias lutas contra seus próprios companheiros de religião, cujo ultramontanismo não se coadunava muito bem com certas idéias de Newman.
Ward e Manning, seus velhos companheiros dos tempos do “Movimento de Oxford”, não lhe pouparam dissabores. Sua atuação não era sempre recebida com bons olhos. Não conseguiu dirigir, como entendia, a Universidade Católica de Dublin. Suas idéias, compendiadas no livro A IDÉIA DE UMA UNIVERSIDADE, não agradavam a todos. Malsucedido foi também na função duma Casa do Oratório, ordem religiosa à qual pertencia, na própria Universidade de Oxford. A atmosfera de desconfiança, mesmo por parte dos católicos, que o cercava, aumentada pela hostilidade de Manning, chegou a ponto de levar o papo a pedir informações ao Cardeal Cullen a seu respeito. O cardeal, embora no caso da Universidade de Dublin, não houvesse ficado ao lado de Newman, esclareceu devidamente o papa, a respeito da ortodoxia do grande convertido.
Vivia Newman entregue aos seus deveres sacerdotais, quando em 1863, o romancista e cônego anglicano Charles Kingsley, famoso pelo seu anticatolicismo, num ataque inesperado, acusou Newman de insincero e mentiroso. Mal sabia o trêfego cônego que iria dar azo a um recrudescimento da fama e da glória de Newman e ocasião a que ele firmasse, ainda mais, sua posição, dentro da Igreja Romana. Newman defendeu-se e publicou a correspondência travada com Kingsley, em que o romancista era tratado com certa ironia. Kingsley perde as estribeiras e desanda a atacar desatinadamente o seu correto e sincero adversário. Newman começa então a publicar folhetos, em 1864, e mais tarde em volume, em 1865, aquilo que constituiria o seu livro famoso APOLOGIA PRO VITA SUA, em que narra, com toda a sinceridade, a história de sua vida, de suas ideias, de sua conversão.
A publicação desses folhetos causou uma emoção profunda no público. Eram lidos em toda a parte e por todas as classes sociais. Sua repercussão foi universal. Dos lugares mais longínquos chegavam a Newman cartas e aplausos. Em Roma, seguia-se com o maior interesse em polêmica, que não era apenas a “apologia” de um homem e de suas ideias, mas representava o rumo novo que tomaria a apologética da Igreja. A sinceridade, a emoção, a força persuasiva, a ironia, o ardor, com que se defendia e atacava, eram uma coisa inédita no campo da polêmica religiosa. Na frase bem caracterizadora de Chesterton, ele era “um homem nu, carregando uma espada nua”.
Kingsley, tão fragorosamente derrotado, recolheu-se ao silêncio. Também no silêncio viveu Newman, de 1867 a 1870, escrevendo o seu livro THE GRAMMAR OF ASSENT, trabalho filosófico, e depois seguiu para Roma, onde estava reunido o Concílio do Vaticano, a discutir o dogma da infalibilidade pontifícia. Newman não se mostrou tão extremado como Manning e outros na defesa desse dogma, mas reconheceu-o e aceitou-o nos termos em que foi afinal redigido. Em 1875, na sua famosa CARTA AO DUQUE DE NORFOLK, defende o Vaticano contra os ataques do Ministro Gladstone. Em 1879, Leão XIII eleva-o ao cardinalato. Em 1890, após tanto anos de lutas espirituais e desilusões amargas, extinguia-se essa grande figura da Igreja Romana e da literatura inglesa. Fazendo-lhe o elogia fúnebre, o Cardeal Manning, seu velho amigo e seu adversário por vezes, disse com muita razão: “Que Roma o canonize ou não, será ele canonizado no pensamento das pessoas piedosas das diversas confissões religiosas da Inglaterra”.
Sua influência talvez não tenha sido ainda devidamente estimada. Escrevendo sobre ele Shane Leslie, disse que “se o mundo de língua inglesa se aproximar algum dia do catolicismo, fa-lo-á por intermédio das palavras, dos passos e da iluminação de Newman”. Efetivamente, muitas das conversões operadas no século XIX e no século XX, na Inglaterra e em outras terras que não apenas as de língua inglesa, tiveram como fermento as ideias Newman e o seu exemplo.
Literariamente, não tem sido menor sua influência. Embora não fosse um escritor propriamente de ficção, seus romances PERDA E GANHO, história duma conversão e CALISTA, romance histórico, tem páginas inesquecíveis. O poeta carece de importância. Mas o seu pequeno poema “A Coluna da Nuvem” se distingue pela sua simplicidade e pela sua grande emoção religiosa e o “Sonho de Gerôncio”, em que narra os sentimentos duma alma, na hora extrema de comparecer perante o seu criador, tem acentos que alguns acham comparáveis aos momentos supremos de inspiração de Dante.
O polemista se destacou pela ironia, pela clareza, pela força convincente, pela riqueza e movimentação de imagens. Analisando-lhes o estilo, dele disse o grande crítico inglês Edmund Gosse: “Os melhores sermões e ensaios de controvérsia indicam um tratamento flexível e delicado da língua, sem ênfase, sem bizarrismo, que, a princípio, mal detêm a atenção – estando o leitor absorvido pela exposição e pela argumentação – mas depois, pouco a pouco, fascina e, por fim, sobrepuja o discernimento, como uma coisa miraculosa de graça e de suavidade”.
É, por sem dúvida, um dos mestres da língua inglesa. O Padre Leo Ward considera-o “o supremo mestre da prosa inglesa. Na sua melhor obra (e a maior parte do que escreveu é o melhor), temos os mais belos exemplos conhecidos do inglês idiomático terso, calado, vigoroso, colorido e artístico. Está soberbamente só, na sua quase miraculosa facilidade em manipular o instrumento delicado e flexível da língua. Não conhecer Newman é não conhecer a língua inglesa”.
O “Movimento de Oxford” teve, pois, uma extensão e um alcance que seus iniciadores não haviam previsto. Movimento do revigoramento do anglicanismo, se, por um lado, suscitou certa volta a práticas de piedade e ao misticismo, como o demonstra a poesia de Cristina Georgina Rossetti, na realidade retalhou mais a túnica do anglicanismo, com o aparecimento de puseísmo e de outras dissidências, e fez reflorir a Igreja Católica inglesa naquela, segundo o sermão famoso de Newman “segunda primavera”, cujos frutos iriam sazonar no correr do século XIX e no nosso século.
Trecho do livro “Estética Literária Inglesa”, Oscar Mendes, 1983 – Editora Itatiaia