Porque comemoramos uma Semana Santa
É comum ouvir afirmações por parte dos protestantes atacando os costumes católicos acerca da celebração da Páscoa, o que é chamado de “Semana Santa”. Para muitos, a Semana Santa é uma festividade sem qualquer fundamento bíblico. Como exemplo, deixo aqui uma frase de um pastor assembleiano:
“Até hoje tem ainda por trás disso toda uma questão cultural, mas é importante destacar que o que existe é uma festa, uma tradição puramente exclusiva da Igreja Apostólica Romana. A igreja protestante não segue esse calendário instituído pela igreja católica que cultua a morte de Jesus, expressada por tristeza, luto e festa da ressurreição. A Bíblia não diz nada sobre isso. Nós evangélicos não seguimos essa linha, que consiste em doutrina dos homens, tampouco, na Bíblia ampara ou ensina qualquer restrição a algo. Por isso, o evangélico não comete pecado ao ingerir carne vermelha, pois não há qualquer recomendação bíblica”. (Pr. Isac Mendes, Assembleia de Deus – Ministério Madureira)
Nesses próximos dias, vamos ouvir muitos dizerem: “Jesus não deixou uma Semana Santa”, ou “toda semana é santa”, e coisas do tipo. Acontece que, para um protestante de confissão mais ortodoxa, como luteranos e anglicanos, isso não passa de balela. Enquanto a maioria dos pentecostais, batistas, reformados, e não-denominacionais vão argumentar nesta linha aparentemente lógica e bela porém falsa, os cristãos católicos e os protestantes da chamada “Alta Igreja” – luteranos, anglicanos, entre outros – vão celebrar, com muito amor, a Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
I. A importância da Semana Santa
Para a Igreja Luterana da Dinamarca – um país luterano desde o princípio da Reforma Protestante, a Páscoa é o “festival mais antigo e mais importante do Cristianismo”. Isso ressoa com a prática católica, cujo calendário litúrgico gira em torno das festas do Natal e da Páscoa (Catecismo, n°1171). E não de hoje: São Leão Magno chamou a Semana Santa de “a maior das festas” (Sermo XLVII in Exodum).
Então, por que comemoramos uma Semana Santa? Porque Cristo é nossa Páscoa (1 Coríntios 5,7). Ele é o Cordeiro cujo Sangue nos lava dos pecados – “eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1,29). A Semana Santa se inicia com o Domingo de Ramos, onde é celebrada a entrada de Jesus em Jerusalém, que foi recebido pelo povo o aclamou com ramos de palmeira: “bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana!” (João 12,13). Em seguida, na Missa de Lava-Pés, é recordado o episódio onde Jesus instituiu a Santa Eucaristia e lavou os pés dos Apóstolos (capítulo 13 do Evangelho de João).
Após isso, se inicia o Tríduo: a Sexta-Feira da Paixão, onde é comemorada a Morte de Jesus Cristo na Cruz; a Vigília Pascal no sábado, onde recordamos a Ressurreição; e o Domingo de Páscoa, que dá início ao Tempo Pascal, que se estende até a Festa de Pentecostes. Após o Domingo de Páscoa, inicia-se uma Oitava, isto é, onde a alegria do Domingo de Páscoa se estende pela primeira semana do Tempo até Pentecostes.
Apenas pelas descrições das festividades, vemos que a Semana Santa traz à vida a própria Escritura, como poderia dizer o dr. Scott Hahn: é o Evangelho, a Vida, a Morte e a Ressurreição de Nosso Senhor se fazendo presente. É o ano da graça do Senhor, de Lucas 4,19. É o tema da primeira pregação pública de Jesus se fazendo mais uma vez atual: o mistério da Sua Obra Redentora.
II. A Páscoa no Antigo Testamento
Em Êxodo 12, foi prescrita uma “instituição perpétua” (v. 14) aos israelitas: um cordeiro deveria ser imolado, preparado de um modo específico, consumido nas casas, também com um modo próprio. Ele deveria ser preparado no dia 10 e consumido no dia 14 do mês, que se tornou o primeiro mês do ano para os israelitas – Abib ou Nisã. Após isso, eles comeriam pães sem fermento por sete dias. Tinha até uma hora própria: a tarde (Números 9,3).
Essa festa era claramente importante para os israelitas. Jesus a seguia, como qualquer outro judeu, e na época da Sua Paixão, discutia-se se ele viria ou não para a Páscoa, já que estava sendo perseguido pelos judeus que juraram matá-lo (João 11,53-55). Vítimas eram sacrificadas durante todo o ano, mas uma era especial: a vítima pascal (v.22), que era memória da libertação do povo do Egito, protegido na noite onde a Décima Praga assolou o país (v.27). Imagino o que um hebreu pensaria se alguém dissesse: “mas todo sacrifício é sacrifício, não existe um mais especial que outro! Quanta religiosidade!”
Essa festa também marcava a pertença ao povo de Israel: caso um estrangeiro desejasse celebrá-la, deveria ser circuncidado, pois essa era a marca distintiva dos filhos de Abraão (Gênesis 12). Esse ano, com certeza, nos sentimos como os israelitas exilados: longe de Jerusalém, sentiram muita falta do Seu Templo, dos sacrifícios, da Páscoa.
III. A Páscoa no Novo Testamento
É evidente a importância da Páscoa para os cristãos, uma vez que Cristo é a nossa Páscoa. Por inúmeras vezes, especialmente em Apocalipse, Jesus é chamado de “Cordeiro”, o tipo de vítima específica da Páscoa. A Igreja iniciou sua missão em Pentecostes, ou Festa das Semanas, que era marcada pelo início da colheita, 50 dias após a Páscoa.
Cristo morreu nos dias que antecedem a Páscoa: adentrando em Jerusalém no dia 10 de Nisã – o dia em que o Cordeiro era preparado. Quando Ele morreu, em 14 de Nisã, morreu à hora nona – três da tarde, provavelmente a hora que o cordeiro pascal era imolado no Templo pelo sumo sacerdote. Cristo celebrou a Páscoa, para logo em seguida se tornar o Cordeiro Pascal. [1]
É precisamente por isso que: 1)sabemos as datas exatas que Jesus morreu; 2)as datas do Carnaval e outros feriados mudam cada ano. O calendário do mundo antigo era o ciclo lunar, isto é, 354 anos. Em Israel, o ano lunar começava com a primeira lua nova da época da cevada madura – isto é, o mês de Nisã. O calendário gregoriano calcula essa data – uma coisa matemática que não é nenhum mistério. Sobre o Carnaval, a terça-feira dessa época ocorre 47 dias antes da Páscoa. Como a Páscoa muda todos os anos de data, o Carnaval também muda.
IV. Porque ainda a comemoramos
A resposta curta é: porque Cristo é nossa Páscoa, e a Cruz é o evento central da história, quiçá do cristianismo. E não é de hoje que isso se faz. Segundo Eusébio de Cesareia, nos tempos do Papa Vítor I (por volta de 190 d.C.), surgiu uma questão sobre a data da Páscoa, que “segundo uma antiga tradição”, era comemorada na data judaica – isto é, 14 de Nisã. Nessa época, Santo Irineu escreveu que S. Policarpo – um discípulo direto do apóstolo São João, observava a Páscoa no dia 14 de Nisã. Ou seja, um apóstolo legou essa prática diretamente aos demais cristãos.
Segundo a Igreja Anglicana, é incerto quando os cristãos começaram a comemorar a Morte e Ressurreição de Jesus Cristo anualmente, mas com o tempo isso se desenvolveu nas festas da Semana Santa: o Domingo de Ramos – cuja procissão já existia em Jerusalém no séc. IV; a Missa de Lava-Pés e o Tríduo. No início, a Páscoa era celebrada numa vigília noturna, onde havia a Eucaristia era celebrada ao canto do galo.
Alguém pode objetar, como fez o Pr. Isac: “ninguém, pois, vos critique por causa de comida ou bebida, ou espécies de festas ou de luas novas ou de sábados” (Colossenses 2,16). Mas não há motivo para utilizar esse verso contra as práticas cristãs. É preciso entender um contexto: Paulo lidava com muitos falsos mestres no meio dos cristãos. Em Colosso, havia alguns que instituíam práticas meramente humanas, sincretizando costumes cristãos, judaicos e até pagãos. De fato, esses ensinos não passavam de ensinos humanos. Mas o mesmo não pode ser dito sobre a Páscoa cristã sem fazer uma grande injustiça.
Temos provas bíblicas da importância da Páscoa para os cristãos – caso contrário, eles não falariam da Cruz de Cristo, tema da sua pregação (1 Coríntios 1,25) usando algo reprovável (a festa da Páscoa); temos provas históricas que os primeiros cristãos comemoraram a Páscoa em todas as épocas da história da Igreja. Então, por que vamos nos escandalizar com algo tão belo, tão sublime, e tão valioso quanto a Páscoa?
V. Um convite
Estamos vivendo não só a Páscoa, como também a pandemia de COVID-19. Deixo aqui um convite aos protestantes que porventura vierem a ler esse texto: venham celebrar o Tríduo conosco. Façam o jejum na sexta-feira (ao invés daquele que o presidente sugeriu), mantenham-se em oração a partir das 15:00 da sexta (hora nona de 14 de Nisã, onde o cordeiro era imolado, e hora da morte de Jesus) e celebrem a Ressurreição na noite do sábado, e nos oito dias a partir do domingo. Não se preocupem, muitos outros protestantes vão celebrar essa data. Busquem as leituras relacionadas e vivam esse momento da espiritualidade cristã.
“Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora
o príncipe deste mundo.
E quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim”.
(São João 12,31-32)
Deus abençoe a todos! Uma feliz Semana Santa!
FONTES:
- Formação da Canção Nova sobre a Semana Santa
- Formação da Comunidade Shalom
- https://www.comshalom.org/o-que-e-oitava-de-pascoa/
- Texto da Igreja Luterana da Dinamarca
- Matéria do jornal “Acre 24 Horas”
- Catecismo da Igreja Católica, seção 1135-1199
- New Advent
- “Introdução à Semana Santa” – Igreja Anglicana
- Bíblias CNBB 2002 e Ave-Maria
- A Ave-Maria está disponível em: https://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/