Nada sei sobre Victor Azevedo além do que se pode ver num vídeo postado recentemente em seu canal do YouTube. Ao que me parece, ele é um pastor de um grupo jovem protestante. Comecei a ver o vídeo, e uma fala do Victor capturou minha atenção quando ele disse:

“Nós temos que colocar ela [a Bíblia] no seu devido lugar”.

Em outro trecho, ele diz que 5 mil religiões fundamentam suas crenças na Bíblia, a mesma Bíblia na qual ele fundamenta as crenças próprias, e começa a se perguntar “Como que 5 mil religiões distintas podem fundamentar toda a sua fé e a sua crença no mesmo livro? E é engraçado que aí você vai ver a crença deles e eles vão abrindo versículo pra você. Você fica até perdido! Você diz ‘Espera aí, mas é a mesma Bíblia em que eu creio, então como que alguém tá vendo uma coisa diferente?’”. Ele mesmo responde:

“É porque cada um vê de um prisma, cada um vê de um lado. E não adianta: a letra pela letra não produz a vida do Evangelho”. No minuto seguinte, ele afirma que, por causa desse mal entendimento existente na mente dos fiéis a respeito do lugar da Bíblia na igreja, o próprio Jesus acabou perdendo o poder e o lugar que Ele deveria ter na vida da igreja.

Minha intenção não é fazer uma análise de tudo que foi dito no vídeo. O Victor levanta alguns pontos interessantes, mas também comete erros grosseiros, como dizer que Constantino decidiu que deveria haver um livro sagrado e por isso a Bíblia foi formada. As mesmas velhas histórias da carochinha sobre a Catolicismo e a história da Igreja continuam ecoando no meio protestante desde o século XVI. Hoje em dia, esses erros e mentiras já ganharam inclusive — não só no meio protestante, mas em toda a sociedade, por conta do ensino deplorável nas escolas — um status diferenciado, que caminha para uma espécie de cultura mitológica: aquele tipo de “verdade” que você nunca dedicou um segundo sequer da sua vida a estudar com seriedade, mas à qual, mesmo assim, você recorre sempre que vê ameaçado algum paradigma que você quer que seja verdadeiro. Se alguém diz que a Igreja Católica fundou a civilização ocidental (o que é precisamente a verdade), prontamente um opositor surgirá com a sentença “Mas a Igreja Católica matou milhões na Inquisição e a Idade Média foi a Idade das Trevas!”. A pessoa não tem a mínima ideia do que está dizendo, mas, por algum motivo, ela acha que sabe qual é a verdade. A ignorância é o argumento mais irrefutável.

(ATENÇÃO! Você é católico e acabou de ler isso? Saiba que o que eu acabei de dizer se aplica principalmente a você! Não fique falando a respeito do que você não sabe!)

Voltemos às falas do Victor Azevedo, àquelas que capturaram minha atenção. Ele disse que nós temos que colocar a Bíblia no seu devido lugar. E qual é o lugar da Bíblia? É necessário definir um contexto apropriado para essa pergunta, pois a resposta “em cima da mesa” seria insatisfatória. Vamos investigar então qual é o lugar da Bíblia em relação à igreja? Qual igreja? Qualquer uma em que a Bíblia seja utilizada. Se alguém pergunta a um protestante qual é o alicerce de sua fé, ouvirá duas respostas: “Jesus” e “A Bíblia”. Se o inquiridor perguntar “E onde posso conhecer sobre Jesus?”, a resposta será “Na Bíblia”. Então, no fim das contas, o protestante responderá que a base de sua fé é a Bíblia. Curiosamente, a Bíblia diz que a coluna e o sustentáculo da verdade é a Igreja (1 Tm 3,15). Também é muito curioso que, em 27 anos como protestante, eu jamais tenha visto um protestante usar esse versículo para responder essa pergunta.

O motivo que torna real tal fenômeno é evidente: o sistema de crenças protestante (seja qual for a vertente de protestantismo em questão) é incapaz de comportar uma proposição como “A Igreja é o fundamento da verdade” sem entrar em conflito interno. Um protestante nunca ouviu essa ideia ser verdadeiramente defendida por nenhum outro protestante. Um pastor pode ter acabado de realizar uma pregação exegética expositiva sobre o referido texto de 1 Timóteo 3,15. Espere ele descer do púlpito e lhe pergunte “Pastor, qual é o fundamento da verdade?”; ele prontamente responderá “A Escritura” em vez repetir o texto bíblico e dizer “A Igreja”. De alguma forma, Victor Azevedo parece ter entendido que esse princípio protestante chamado Sola Scriptura coloca a Bíblia num lugar ao qual ela não pertence, forçando-a a desempenhar uma função que ela não foi concebida para desempenhar. Caso você esteja se perguntando qual é então o lugar correto que a Bíblia deve ocupar, entenda primeiro a distinção entre suficiência formal e suficiência material neste artigo do Veritatis Splendor.

Se eu ouvisse, quando eu ainda era protestante — e pouco antes da minha conversão ao catolicismo –, a frase “a letra pela letra não produz a vida do Evangelho”, eu prontamente responderia que seu autor é por certo um relativista, e indagaria em seguida qual seria então a regra de fé sob a qual devem os cristãos viver se não é somente pela Escritura. Creio que Victor Azevedo esteja mais perto do catolicismo do que ele pode perceber, porque ele já entende algo que eu não entendia quando era protestante, mas ele ainda não entende algo que eu entendo como católico. A coisa é esta: Jesus não nos deixou neste mundo um livro; Ele nos deixou uma Igreja. Jesus não nos deixou 12 escritos; Ele nos deixou 11 homens (e Matias foi adicionado em seguida). Jesus não reuniu um novo cânon; Ele reuniu um novo povo de Deus. Jesus não fundou um livro; Ele fundou uma Igreja. Por que era tão difícil pra mim perceber isso que o Victor percebeu (mesmo que não completamente)? Por que é que eu nunca havia parado para pensar que os cristãos (a Igreja) passaram centenas de anos sem Bíblia e sem ao menos saber quais livros pertenciam ou não à Bíblia, mas não houve um momento sequer em que a Igreja ficou sem pessoas vivendo a fé que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ordenou ter? Numa situação hipotética, onde você diria que está a Igreja: num edifício vazio com uma Bíblia dentro ou num local onde vive uma pessoa que ama as outras com o profundo amor do Cristo?

Eu não pretendi, no questionamento anterior, separar a Bíblia da Igreja. Contudo, infelizmente é isso que eu entendo que os protestantes estão fazendo. Sem ver, sem compreender, sem perceber, eles estão dizendo que Cristo fundou a Bíblia e a Bíblia reuniu a Igreja, quando na verdade é justamente o contrário! Cristo fundou a Igreja e a Igreja reuniu a Bíblia! É por isso que eu nunca vi um protestante dizer que a Igreja é a coluna e o sustentáculo da verdade. É por isso que Victor Azeredo estranha o lugar em que a Bíblia é colocada nas igrejas protestantes. É por isso que milhares de protestantes estão se tornando católicos. Dia após dia, e especialmente em nossa era digital, milhares de protestantes deparam com o pensamento católico e percebem, quase que imediatamente, que a estrutura de crença protestante está de cabeça para baixo. Enquanto Jesus fundou Sua Igreja e um novo sacerdócio (já estou esperando algum protestante dizer que os Apóstolos não são chamados de sacerdotes na Bíblia) nas pessoas dos Apóstolos, e só depois de 350 anos de disputas os sucessores desse sacerdócio apostólico conseguiram reconhecer quais eram de fato os livros inspirados por Deus, os protestantes estão acreditando que o Cristo deixou a Bíblia como única fonte de verdade da fé cristã, muito embora essa afirmação seja de uma absurdidade histórica sem tamanho. Sabe o que é ainda mais surpreendente? A afirmação de que a Bíblia é a única fonte de verdade da fé cristã não pode ser encontrada na própria Bíblia.

O Catecismo da Igreja Católica, logo no início, em seu parágrafo de número 85, diz que “O ofício de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo” (ênfase adicionada por mim). Nosso Senhor Jesus Cristo jamais nos deixaria um livro como única regra de fé porque o livro é um registro linguístico estático do passado, enquanto que uma das características mais marcantes de Sua Igreja é que ela é viva. Nesse sentido, as palavras de Victor Azevedo “a letra pela letra não produz a vida do Evangelho” estão corretas. O lugar da Bíblia nunca foi como única fonte de verdade da fé cristã, mas sim ao lado da Tradição e do Magistério, sustentando, como parte desse tripé católico, toda a Igreja, que por sua vez é a coluna e o sustentáculo da verdade de Nosso Senhor Jesus Cristo neste mundo, o Corpo vivo da viva Cabeça que é Cristo.

Davi Leite de Resende

Davi Leite de Resende

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