Codex Amiatinus, versão mais antiga da Bíblia inteira ainda intacta

Introdução

A parte mais difícil geralmente é conseguir uma definição exata do que é Sola Scriptura, algumas pessoas sempre vão enfatizar ou negar algum ponto ou outro, então aqui tomarei como premissa algo que possa ser conciliador com todas as “visões” de Sola Scriptura: as Sagradas Escrituras são Norma Normanda, também conhecida como Norma Normans.

Explico: Uma Norma Normanda é uma norma/regra que é soberana, isto é, não está abaixo de nenhum outro critério externo a ela que a regule, enquanto que uma Norma Normata é uma norma/regra que deve estar de acordo à uma norma/regra superior ou anterior à ela. 

Por exemplo, imagine todo o corpo de leis que existem em nossa nação, existe leis trabalhista, tributárias, de trânsito… Todas elas são leis, porém são reguladas e devem estar de acordo com a Constituição, ao passo que a Constituição não está abaixo de nenhum outro compêndio de leis, deste modo, a Constituição seria uma Norma Normanda ao passo que leis trabalhistas seriam Norma Normata.

Isto posto, em linhas gerais, um protestante dirá, em maior ou menor grau, que tradições, confissões de fé e outras formas de autoridade são válidas, porém todas devem estar sujeitas à autoridade da Bíblia e sem poder estar fora dela, deste modo a Bíblia não apenas seria uma Norma Normanda, mas a única Norma Normanda possível.

Isto parece ser bem lógico, porém vamos analisar a robustez deste argumento e ver se de fato as Sagradas Escrituras são Norma Normanda ao invés de Norma Normata.

Pseudo-objeção

Alguém poderia levantar a objeção de que a Bíblia Sagrada faz referência para tradições judaicas (como a disputa de Janes e Jambres contra Moisés), livros apócrifos (como o Apócrifo de Enoque) e recursos da filosofia, mas isto não poderia ser tomado como autoritativo sobre a Bíblia uma vez que a Bíblia não a aponta como autoritativa nem a usa como plena de autoridade, muito menos se sujeita à autoridade delas, pois além de não tomar livros como o de Enoque como autoritativo em si, pois se o fizesse, estaria composto no Cânon Bíblico, coisa que não está.

Assim, o argumento da referência a fontes externas não lhes imputa autoridade alguma sobre a Bíblia, deste modo, é auto-evidente que a mera referência ou menção a algo não a torna autoritativa sobre a Bíblia.

Questão 1 – Se a Bíblia aponta algo além dela como autoridade soberana

Mas a Bíblia aponta algo como igualmente autoritativo? Isto é, existe algo em que a Bíblia diz “isto aqui é autoritativo e deve ser guardado”?

Neste caso, sim. As Sagradas Escrituras apontam para uma Tradição e um Depósito de Fé que devem ser mantidos como autoritativos por serem provenientes dos apóstolos, os memos autores das Sagradas Escrituras.

Alguém poderia contrapor que a Bíblia não nos diz exatamente o que é esta Tradição nem este Depósito da Fé, assim não fica evidente nas Escrituras qual é esta autoridade normativa e que também não tira das Escrituras a autoridade soberana, deste modo, a Bíblia para os dias de hoje continuaria sendo a única Norma Normanda existente e o Sola Scriptura continua imperando como regra.

Mas aqui existem algumas respostas à este contraponto:

O primeiro é que se a Bíblia aponta para outra autoridade independente dela, significa que esta norma também é autoritativa como a Bíblia.

O segundo é que a Bíblia não aponta ela como única regra, deste modo, mesmo que, por hipótese, fosse verdade que o que temos seja apenas a Bíblia, no mínimo deveria considerar que existe uma “autoridade” perdida e que a Bíblia só é Norma Normanda pois esta outra autoridade nos seria ausente hoje, o que obviamente não é o argumento protestante.

Deste modo, assim como a questão 1 não consegue demonstrar claramente em si mesma que a Bíblia não é Norma Normanda, o contraponto não consegue sustentar que a Bíblia seja, assim ficaria empatado sem uma conclusão clara, isto até o momento.

Um placar de 0x0.

Questão 2 – Se as Escrituras são autoevidentes

Se a Bíblia é autoritativa em si mesma de forma soberana, isto é, Norma Normanda, então de algum modo todo o seu conteúdo tem que ser auto apresentado como autoritativo, isto é, as Escrituras Sagradas deveriam apresentar o que é Escritura Sagrada. Mas não é o que vemos, o Venerabilíssimo Príncipe Apóstolico São Pedro nos aponta como o Magníssimo Apóstolo São Paulo como autoritativo, porém não existe outro texto que seja apontado como autoritativo pela Bíblia, ou seja, o que chamamos de Bíblia não é autoevidente.

Alguém pode contrapor de duas formas, uma dizendo que a Bíblia aponta outros textos e que por isso seriam autoritativos, outra dizendo que Paulo seria Apóstolo e que, assim como Pedro, são autoritativos em si mesmo.
Enquanto o segundo é verdadeiro, o primeiro, como vemos na “Pseudo-objeção” não o é, pois se uma referência torna o texto autoritativo, apócrifos passariam ser autoritativos e deixariam de ser apócrifos, que não é o caso. Deste modo, autores como Lucas e Marcos deixariam de ser autoritativos e deveriam ser retirados da Bíblia.

Além do mais, o apóstolo São Mateus não se apresenta no texto, assim o texto dele não é autoevidente como autoritativo, além de outras cartas na qual o autor também é oculto, fazendo da Bíblia necessitar de algo externo à ela para validar sua autenticidade e, portanto, a sua autoridade.

Assim podemos concluir que as Sagradas Escrituras não são autoevidentes e os contrapontos não são capazes de fazer uma demonstração sólida da autenticidade escriturística, deste modo o Sola Scriptura fica, no mínimo, fragilizado, dependendo de recursos externos à Bíblia para a validar a autoridade da Bíblia, pondo em xeque o posto de Norma Normanda da Bíblia.

Assim um ponto contra o Sola Scriptura e a favor das objeções à ela.

Um placar de 1×0

Questão 3 – Se este recurso externo à Bíblia é conhecido e também se é suficientemente autoritativo

Se este recurso externo a Bíblia não fosse conhecido, o próprio cânon Bíblico nos seria desconhecido, deste modo, porque a Bíblia existe então o recurso externo também existe. Mas qual seria ele?

O único jeito de conseguir chegar a lista escriturística fidedigna, por se tratar de algo do passado, é pelos meios históricos registrados que temos, e quando observamos este fator histórico, vemos uma quantidade enorme de listas e tentativas de estabelecer um cânon. Mas se existe uma concorrência de listas bíblicas tão grande, como saber qual o verdadeiro e como saber se o que temos hoje é realmente verdadeiro ou fruto de algum erro?

Apenas aqui podemos observar algumas coisas:

  1. Que o cânon bíblico não é auto-evidente, pois se o fosse, não existiriam tantas listas distintas.
  2. Que este cânon atual foi definido com algum nível de autoridade sobre a Bíblia, deste modo o conteúdo bíblico fica sujeito ao critério que o define como verdadeiro, tirando o posto de Norma Normanda para Norma Normata das Sagradas Escrituras.

Alguém poderia contrapor dizendo que podemos chegar às Escrituras usando apenas as Escrituras, como é o caso da Crítica Textual.

O problema deste argumento é que a Crítica Textual não serve para dizer se um texto é canônico ou não, mas se o texto está correto quanto seu conteúdo original, podendo ser feito o trabalho de crítica textual de livros apócrifos, como o Livro de Enoque ou Evangelho segundo Tiago por exemplo, o que evidentemente não torna um apócrifo como canônico.

Outro problema é que não temos acesso aos textos primários/originais, a exemplo do texto que atribuímos de autoria de Lucas, o fragmento de manuscrito mais antigo que temos é datado da metade do século II, 100 anos após o período da história ali escrita, sendo a maioria dos manuscritos vindo do século III, ou seja 200 anos depois, assim os manuscritos que temos são bem tardios e fora do período apostólico, o que já seria suficiente para o desqualificar como canônico pelos critérios da Crítica Textual. 

Ainda existem alguns agravantes pois nada na inteira Bíblia aponta que Lucas seja o autor daquele texto, e mesmo que apontasse, Lucas não é apóstolo e nada na Bíblia aponta que ele tinha autoridade apostólica nos seus escritos.

Isso tomando apenas o Evangelho segundo Lucas, a mesma problemática se estende para outros livros.

Então o cânon está incorreto? Se considerarmos apenas os critérios usados pelos protestantes para justificar o Sola Scriptura, potencialmente sim. Mas existem outros meios que podemos chegar ao cânon, mas isso significaria o fim do Sola Scriptura: Magistério e Tradição.

Quando olhamos autores eclesiásticos como Santo Irineu de Lyon onde ele, baseado no ensino recebido de São Policarpo de Esmirna sendo este discípulo direto do Piíssimo Apóstolo São João, vemos que a autoria de alguns textos era conhecida de forma tradicional, isto é, um conhecimento que foi inicialmente transmitido oralmente até que Irineu a registrou [1], além de outros autores que fizeram o mesmo.

Baseado neste tipo de ensino, no final do século IV, quando a perseguição aos cristãos tinha finalizado no início deste mesmo século, puderam os bispos se reunir em relativa paz e estabelecer de forma conjunta em dois sínodos, um em Roma em 382 com os bispos do ocidente recebendo os bispos do oriente após o II Concílio Ecumênico de Constantinopla [2], e em Cartago em 397 com os bispos da África [3], chegando em ambos os sínodos numa mesma lista, o que foi reafirmado [4] e dogmatizado [5] por Concílios posteriores.

Ou seja, de forma unânime o Magistério reunido de toda a Igreja deu o reconhecimento através da Tradição do que é Sagrada Escritura.

Deste modo, sem a Tradição e sem o Magistério, o Cânon da Bíblia teria ficado indefinido até os dias de hoje, gerando diferenças no Novo Testamento, muito além das diferenças do Antigo Testamento entre católicos e protestantes.

Um grande ponto para a objeção ao Sola Scriptura, gerando um placar de 2×0.

Porém, como podemos ver, é evidente, se não pelas escrituras, mas pela via da análise da realidade por meio da história, conseguimos encontrar aquilo que a Bíblia aponta como autoritativo da Questão 1, fazendo o placar, por causa da Questão 3, ir para 3×0.

Conclusões e Observações

O que podemos concluir então sobre o Sola Scriptura?

De imediato, podemos observar que, apesar do bom intento e profunda reverência pelas escrituras que os protestantes nutrem, infelizmente para eles, esta é uma reverência desbalanceada, dando relevância demasiada ao ponto de anular outras veneráveis autoridades legítimas, fazendo deste princípio protestante algo injusto e desmedido.

Uma segunda coisa que podemos observar é que, novamente, apesar do bom intento, não há base na realidade que a sustente, tornando-a apenas um argumento meramente retórico que tenta apresentar uma lógica de algo que é infundado, fazendo o Sola Scriptura um paralogismo (desenvolvimento lógico de premissas erradas) ao invés de um silogismo (desenvolvimento lógico de premissas corretas).

Note que isto não desqualifica a Bíblia e nem tira a sua infalibilidade, ao contrário, a mantém como algo Normativo, isto é, que devemos venerar, ler, estudar, aprofundar e, principalmente, viver os ensinos destas Escrituras que nos são tão Sagradas.

Reconhecer o erro do Sola Scriptura enriquece a própria Bíblia, uma vez que, conhecendo o ensino e autoridade pelas quais chegamos ao que é Bíblia, podemos por estes mesmos meios chegar ao seu correto entendimento, nos levando ao seu verdadeiro ensino. 

O que infelizmente não é visto no meio protestante, já que os próprios movimentos oriundos da Reforma Protestante chegaram a conclusões totalmente opostas e impossiveis de coexistirem como ortodoxas, levando uma gama grande de doutrinas que torna o Sola Scriptura insustentável, a exemplo de se os santos no céu intercedem por nós ou não, se os santos são veneráveis ou não, se o nosso Adorado Senhor e Deus Jesus Cristo está fisicamente presente ou não na Eucaristia/Santa Ceia e se pode ou não ser adorado, se os sacramentos são meios salvíficos ou não, quais são os sacramentos, até mesmo se sacramento existe algum.

Os frutos do Sola Scriptura mais parece as contraditórias leis humanas ou até mesmo uma anarquia, não existindo nenhum tipo de autoridade real, o que faz com que claramente que os reformadores protestantes, que são os autores e culpados deste erro, não tinham a inspiração divina e o auxílio do Espírito Santo nesta formulação, uma vez que a Divina Lei do Reino de Nosso Cristo Rei, é única, reta e ordeira já que a Sua Lei Divina tem “o seu ‘sim’, ‘sim’, e o seu ‘não’, ‘não’; o que passar disso vem do Maligno” [6], motivo pelo qual a Igreja sempre buscou os sínodos e Concílios Ecumênicos para levar um assunto à exaustão e chegar à uma conclusão definitiva e tomar a sua regra única para toda a Igreja, isto é, estabelecer os Dogmas, ou seja tornar o ‘sim’, ‘sim’ e o ‘não’, ‘não’.

E por último, se a Bíblia não é Norma Normanda, por depender do Magistério e da Tradição; a Tradição não é Norma Normanda, por depender do entendimento do Magistério e estar de acordo com a Bíblia; e o Magistério não é Norma Normanda por estar sujeito à Tradição e Bíblia para exercer sua autoridade… O que seria Norma Normanda?

Resposta: O próprio Deus, que É a Verdade e que sustenta toda a realidade em Si mesmo. E vemos que Nosso Senhor e Deus Jesus Cristo estabeleceu nesta vida uma “embaixada” do Seu Reino Celeste na forma da Sua Santa Igreja, sob o governo dos Apóstolos sendo eles os “Embaixadores de Cristo” [7], assim os Apóstolos por receberem esta autoridade de Deus, eram Norma Normanda, e vemos esta autoridade facetada de 3 formas hoje: Magistério (sucessão da Autoridade Apostólica na Igreja), Tradição (origem e desenvolvimento do Ensino Apostolico) e Sagradas Escrituras (registro fiel dos Apóstolos).

Deste modo, vemos que Norma Normanda “é a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade” [8]. Por isso deixei de ser protestante e me tornei católico, por causa de tudo isso eu “não creria no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja católica” [9].

REFERÊNCIAS

[1] Santo Irineu de Lyon, Contra as Heresias, III,14

[2] Sínodo de Roma, Decretum Damasi. Denzinger-Hünermann, n. 179-180

[3] III Sínodo de Cartago. Denzinger-Hünermann, n. 186

[4] Concílio de Florença, Bula “Cantate Domino”, sobre a união com os coptas e os etíopes,

4 fev. 1442. Denzinger-Hünermann, n. 1334-1336

[5] Concílio de Trento,  Sessão 4ª, 8 abril 1546. Denzinger-Hünermann, n. 1501-1505

[6] São Mateus 5.37

[7] II Coríntios 5.20

[8] I Timóteo 3.15

[9] Santo Agostinho, Contra Epistulam Manichaei quam vocant fundamenti 5. 6