Há alguns anos, eu passei por um período no qual frequentei muitos funerais de amigos e familiares que perdi. Depois disso tudo, eu fui ao casamento de um amigo que era evangélico. Foi um alívio finalmente ir a um evento onde podemos aproveitar a companhia uns dos outros enquanto celebramos a vida e um novo amor. Quando chegou na hora dos discursos, o pai do noivo trouxe sua Bíblia e fez uma pregação de quase 20 minutos, embora não tenha sido um sermão do tipo congratulatório.

Ele terminou apontando o dedo para o alto, dizendo: “lembre-se que você não é o centro!” – o que surpreendeu todo mundo, inclusive eu, foi que em nenhum momento ele disse: “eu estou orgulhoso de você! Eu agradeço a Deus porque você está feliz e porque você encontrou o amor da sua vida! Eu acolho a sua esposa na nossa família!”

Apesar dessa mensagem áspera, eu não posso dizer, como cristão, que ele errou ao dizer “você não é o centro”. Quando falamos de uma vida dedicada a honrar Jesus, isso nos faz pensar além de nós mesmos e considerar que as outras pessoas também são feitas à Sua Imagem. Apesar de não ser raro ver cristãos aproveitando para ‘apadrinhar’ seus irmãos – isto é, chamar atenção para si mesmos com o pretexto de dar a glória de Deus. As Escrituras nos alertam sobre essa prática:

“Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles.

Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu.”  (Mateus 6,1)

A doutrina de soli Deo gloria (em latim, “a Deus somente, a glória”) é um dos Cinco Solas (ou Temas) que foram desenvolvidos pelos primeiros reformadores protestantes do séc. XVI em resposta à corrupção que havia dentro da Igreja Católica. Todos os reformadores acreditavam que pessoas que nasceram com pecado original – incluindo os santos canonizados, os papas e o clero na Igreja Católica Romana – não são dignos de qualquer glória conferida a eles. Grande parte desta reação deu-se pela veneração e devoção aparentemente excessiva à Virgem Maria e aos santos de muitos fiéis, como se estivessem substituindo a adoração de Jesus. Somando isso aos abusos violentos, como a venda de indulgências e a vida luxuosa que certos clérigos levavam secretamente, alguns fiéis cristãos levantaram a voz e se revoltaram contra a corrupção do seu tempo.

Como um católico revertido, eu digo que a reforma na Igreja era uma necessidade urgentíssima, e nós estamos em constante necessidade de uma reforma ainda nos nossos dias. No entanto, vale salientar que reformar não significa reinventar a roda. Eu acredito que uma reforma constante está ligada à luta contra a tendência implacável da humanidade ao pecado. Talvez o termo mais apropriado seja voltar ao caminho do qual nos desviamos. Nesse caso, qualquer coisa que tome o lugar de Deus e a glória que lhe é devida é um ídolo.

Eu acredito que esta apreensão acerca de qualquer veneração concedida a qualquer ser humano (vivo ou morto) certamente tem seu mérito, mas o que torna única a ênfase protestante no soli Deo gloria é a rixa histórica com a perspectiva católica sobre a comunhão dos santos. Tendo em vista a maneira que a Igreja Católica enfatiza a veneração da Virgem Maria e dos santos (somando isso ao problema generalizado da catequese e do ensino de baixa qualidade), é certamente possível que alguns católicos dão maior glória às criaturas ou às criações do que ao Criador. A palavra “veneração” é uma palavra gatilho que é frequentemente confundida com a adoração plena e glória devidas somente a Deus, apesar de que o termo em si possui graus diferentes de respeito e honra.

Por exemplo, Êxodo 20,12 e Efésios 6,2 nos ordenam a honrar pai e mãe – é um mandamento dado diretamente por Deus que implica que reconheçamos e respeitemos a autoridade de nossos pais. Com certeza, isso não significa que nós os cultuamos com plena adoração, mas seria depreciável crer que uma função ordenada por Deus como a paternidade não merece o respeito e a consideração como diz as Escrituras. Honrar nossos pais, como Deus ordena, é um ato de louvor a Deus. Pois as Escrituras dizem:

“Se me amais, guardareis os meus mandamentos.”
(João 14,15)

Portanto, reconhecer Maria como a eleita Mãe de Deus apenas faz sentido quando nós consideramos a maneira como honramos nossos pais terrenos. Partindo de uma perspectiva protestante, as doutrinas e os dogmas marianos da Igreja Católica podem parecer intimidadores até que se entenda propriamente que quando nós honramos a mãe de Jesus, glorificamos a Deus. Em sua obra A Cidade de Deus, Santo Agostinho descreve a glória e honra dadas somente a Deus como latria, enquanto a honra devida a certas pessoas, como os santos e mártires, é chamada de dulia.

Já que Maria é a mãe de Jesus – o Filho de Deus, ela é venerada de um modo que a Igreja Católica chama de hyperdulia, um nível maior que a dulia encontrado no Antigo Testamento, onde se praticava a veneração do legado de um pai. No entanto, isso não chegava ao grau de latria.

Ironicamente, o que os primeiros reformadores protestantes pretendiam para direcionar toda a glória a Deus se tornou exatamente o que eles combatiam. Enquanto as vidas dos santos canonizados e mártires foram desprezadas com o advento da Reforma, muitos cristãos que celebram a Reforma transformaram, inconscientemente, Lutero, Calvino, Tyndale, e até mesmo muitos pastores e teólogos célebres nas suas próprias versões dos santos canonizados. Eles não rezam pedindo a intercessão deles, mas muitos acreditam que os seus reformadores, pastores ou teólogos favoritos são guiados pelo Espírito Santo de uma maneira que não difere em nada da crença católica sobre os Santos e de como eles irradiaram a glória de Deus com suas vidas.

De um ponto de vista católico, um protestante que honra um dos primeiros reformadores ou até algum dos patriarcas do AT se encaixa no culto de dulia – apesar de que, para eles [protestantes], não seria impossível acabar cultuando outros com a glória que deveria ser reservada a Deus somente.

Quando eu converso com meus amigos ateus e ex-cristãos sobre esse tópico, às vezes ele falam de como eles veem o Deus cristão como um sociopata narcisista. Eu imagino que alguém pode, ao ler Êxodo 20,3-5 (“Eu sou o Senhor, teu Deus, Deus ciumento”), e interpretar isso como se Deus fosse inseguro e estivesse competindo pela afeição dos seres humanos. Eu observo que algumas denominações evangélicas menores levam isso ao pé da letra ao evitar dar qualquer crédito a um ministro ou evangelista; enquanto outros às vezes se orgulham de como seus próprios trabalhos trouxeram almas para o Senhor, sem perceber que isso vai contra o que diz Efésios 2,8-9:

“Porque é gratuitamente que fostes salvos mediante a fé. Isto não provém de vossos méritos, mas é puro dom de Deus. Não provém das obras, para que ninguém se glorie.”

Eu me recordo de ter lido relatos de encontros de avivamento espiritual onde os escritores não colocaram seus nomes e os nomes de qualquer testemunha ocular, para evitar que qualquer glória fosse desviada de Deus. A intenção, creio eu, é boa, mas eu também acho que, se os livros da Bíblia fossem escritos assim, eles nunca seriam parte do Cânon – já que a autoria é um critério importante para entender a fonte do texto. Ao longo dos Evangelhos e do livro de Atos, há uma abundância de nomes de pessoas que testemunharam milagres feitos por Jesus e através dos Apóstolos da Igreja primitiva.

O extremo oposto agiria assim: “eu sou o centro das atenções aqui!” – no meu artigo Love Yourself First? [“Amar a si mesmo sobre todas as coisas”?], eu abordei o problema do perigoso foco em si mesmo e como ele pode fazer com que as pessoas negligenciem as necessidades dos outros ao seu redor. Em círculos não-cristãos ou de cristãos progressistas, eu tenho observado que há uma ênfase maior na autoafirmação do que na maioria das comunidades religiosas conservadoras.

Eu diria que afirmar-se, em si mesmo, não é algo errado. E, muitas vezes, as pessoas precisam muito de incentivo para superar desafios e obstáculos que elas encontram no nosso mundo. Mas, sem o apoio de um poder maior, percebo que isso acaba se aproximando muito do pelagianismo – a ideia que a humanidade pode ser boa ou alcançar a salvação sem a assistência da graça divina. Em Marcos 10,17-19, Jesus responde ao jovem rico: “por que me chamas bom? Só Deus é bom”. Se Deus não fosse perfeito em humildade como é revelado através de Seu Filho, então Ele não seria digno do título de Todo-Poderoso se a perfeição fosse inatingível para Ele.

Eu acredito que glorificar a Deus como Criador de todas as coisas é certamente necessário, também penso ser igualmente importante não desprezar as pessoas – seja pelas infelizes circunstâncias em que elas se encontram, ou em comemorações como o casamento do meu amigo. Eu acho que as palavras “lembre-se que você não é o centro” podem gerar um efeito negativo quando usados na hora errada e no lugar errado – como um funeral, por exemplo. Eu sei que há muitos cristãos fariseus nos nossos dias, que desviam a atenção das realizações de alguém, em ocasiões especiais, na boa sorte ou até (ouso dizer) no sofrimento e perda usando o pretexto de “dar toda a glória a Deus”. Apesar de dizerem “só Deus importa, e você não”, alguns acabarão tendo esse comportamento.

As Escrituras revelam que Deus valoriza cada um de Seus filhos, e que cada um deles importa, pois é criado à Imagem de Deus:


“Até os cabelos de vossa cabeça estão todos contados.
Não temais, pois! Bem mais que os pássaros valeis vós.”
(Mateus 10,30-31)

A parábola da ovelha perdida diz:

“E, voltando para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: ‘Regozijai-vos comigo,
achei a minha ovelha que se havia perdido’.
Digo-vos que assim have­rá maior júbilo no céu por
um só pecador que fizer penitência do que por noventa
e nove justos que não necessitam de arrependimento.

Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas e,
perdendo uma delas, não acende a lâmpada, varre a casa
e a busca diligentemente, até encontrá-la?”
(Lucas 15,6-8)

Se essas passagens não são um exemplo de como o Deus de amor deve parecer, então eu não sei o que é.

Não é verdade que toda a alma que chega ao céu sem mérito próprio é um testemunho da glória de Deus?

Durante a Missa, na Consagração da Eucaristia, o sacerdote reza:

“Por Cristo, com Cristo e em Cristo. A vós, Deus Pai Todo-Poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda honra e toda glória, agora e para sempre. Amém!”

Eu afirmo que católicos e protestantes não deveriam ter problema algum em afirmar que toda a glória pertence a Deus. Podemos resumir dizendo que a própria criação é a manifestação da glória de Deus – de maneira mais evidente através da vida dos santos, dos mártires e dos que vivem sua fé nos dias de hoje. Tendo em vista esta compreensão adequada sobre a maneira pela qual Deus deve ser glorificado, acredito que um Deus perfeitamente humilde desejaria que Suas criações compartilhassem Sua glória. E no final, quando Cristo retornar para buscar Sua Noiva – a Igreja, eu imagino que o banquete de casamento será muito alegre e acolhedor, sem precisar sofrer esses discursos constrangedores..

 “E todas as cria­turas que estão no céu, na terra, debaixo da terra e no mar,
e tudo que contém, eu as ouvi clamar:

“Àquele que se assenta no trono e ao Cordeiro, louvor, honra, glória e poder pelos séculos dos séculos.”

(Apocalipse 5,13)

Título original: A Contemplation of Soli Deo Gloria
Autor: René Albert – Coffee and Crucifix (Patheos)
Citações bíblicas: Bíblia Ave Maria
Tradução: Symon Bezerra
Revisão: Bryan M. dos Santos

René Albert

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