(Novembro de 1846 a dezembro de 1847)
Em 13 de outubro de 2019, o Papa Francisco celebrou a Missa de Canonização de São John Henry Newman¹, o brilhante teólogo do século XIX e converso do Anglicanismo, que muitos acreditam estar destinado a se tornar um Doutor da Igreja.
A recepção de Newman na Igreja Católica em 9 de outubro (o dia de sua festa), em 1845, abalou os fundamentos da Igreja Anglicana, e sua viagem a Roma no ano seguinte para se preparar para a ordenação católica atraiu inicialmente um interesse considerável. Mas Newman havia pensado e rezado seu caminho do Anglicanismo ao Catolicismo na relativa solidão de seu estudo, e seu círculo de amigos católicos era pequeno. Logo ficou evidente que em Roma ele e seu secretário Ambrose St. John² viveriam em relativo isolamento. Newman durante algum tempo gozou de certo status de celebridade, porém ele duvidava que alguém realmente o entendesse.
A Congregação Propaganda Fidei, o centro dos esforços missionários da Santa Sé, recebeu-os e deu-lhes quartos no Collegio Propaganda, próximo aos passos espanhóis. Lá, Newman e St. John se tornariam seminaristas comuns. Todavia quem iria educar o teólogo mais perspicaz de seu tempo? Talvez seja reconfortante ouvir seu amigo St. John relatar que as palestras eram enfadonhas e um tanto carentes de modelos pedagógicos, fazendo com que Newman muitas vezes caísse no sono durante as aulas (Felizmente, isto não parece ter sido utilizado contra Newman na causa da canonização!).
Newman foi deixado em grande parte por sua própria conta, para continuar seus brilhantes estudos dos Padres da Igreja. Os teólogos de Roma tinham algumas dúvidas sobre seu trabalho recentemente publicado – Essays on the Development of Christian Doctrine (Ensaios sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã). O argumento de Newman de que o dogma católico não foi, por assim dizer, transmitido do Monte Sinai, mas desdobrado em um processo divinamente guiado de desenvolvimento histórico na vida da igreja foi inicialmente uma ideia muito desconcertante para os teólogos católicos, pressionados com dificuldade para defender uma tradição sitiada por quase todos os lados. Eles naturalmente se perguntavam sobre o quanto este novo converso era realmente católico.
Então Newman, recém-chegado de um mundo eclesial diferente, não foi bem compreendido, e dado seu temperamento um tanto melancólico, ficamos com a nítida impressão de que seu ano acadêmico de 1846-1847 em Roma certamente não foi de “alegrar” o retorno de um filho pródigo da Igreja (Lc 15,24). Newman, outrora consumado integrante da Anglicana Oxford, é agora um hóspede incômodo e desorientado, lutando para aprender os costumes da casa.
Seu primeiro ato público após sua conversão foi uma oração fúnebre, vista como uma espécie de humilhação; e o clamor chegou até ao ouvido papal. “Todos nós precisamos de conversão”, disse Newman, a uma congregação habituada a elogios floridos; ao alguém sugeriu que ele deveria ser jogado no Tibre. O Papa Pio IX ofereceu a Newman conselhos sábios sobre sua tentativa embaraçosa de converter os ingleses naquele funeral romano: “Em tais ocasiões, o mel é mais adequado do que o vinagre”. Mas ele foi capaz de manter um senso de humor autodepreciativo, como quando ele registra com cuidado seu primeiro encontro com Pio IX, que parecia “muito cordial e amigável”, apesar de ter batido com a cabeça no joelho do Papa enquanto se curvava para beijar o pé papal (Letters and Diaries, XII,9).
Seu retiro de ordenação é extremamente revelador. Em suas notas, penso que Newman captou precisamente o que perturba os corações de muitos ex-clérigos protestantes que se aproximaram da porta da Igreja Católica – a rendição da autonomia pessoal, a perda de status, a dificuldade e a incerteza de recomeçar. Aqui estão alguns trechos representativos:
“Até onde sei, não desejo nada deste mundo; não desejo riqueza, poder ou fama; mas, por outro lado, não gosto de pobreza, problemas, restrições, inconvenientes… Gosto de tranquilidade, segurança, uma vida entre amigos, e entre livros, sem preocupações com os negócios… Em quase tudo, gosto de minha própria maneira de agir”.
Newman muitas vezes se sentiria constrangido e consciente de si mesmo, “como uma pessoa agindo em um papel novo e desconhecido”. Ele havia se acostumado a uma vida muito pública como um tipo de “agitador” na Igreja Anglicana. Agora ele parece rastejar ao longo do chão quando quer voar. Ele lamenta a perda de amigos. “Sinto-me muito consciente de que não sou mais jovem, mas que meus melhores anos são passados, e estou triste com o pensamento dos anos passados; e me vejo apto para nada, um tronco inútil”.
Newman tem plena consciência de ter perdido a “fé natural e inata” que tinha quando jovem. “Agora eu tenho muito medo do sacerdócio, para não me comportar sem a devida reverência em algo tão sagrado”. Sua fé na eficácia da oração e sua confiança na Palavra de Deus parecem ter se afastado dele exatamente no momento em que ele mais precisava deles. “Os anos crescentes me privaram daquele vigor e vitalidade de mente que um dia tive e agora não tenho mais… Minha mente vagueia incessantemente; e minha cabeça dói se me esforço para me concentrar em um único assunto”. (Tristram, Henry, ed. Autobiographical Writings, p. 245-248).
Foram os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola que o levaram precisamente ao ponto que ele precisava estar. Ao ajoelhar-se diante do Cardeal Prefeito da Congregação Propaganda Fidei, em São João de Latrão, em 29 de maio de 1847, para receber a ordenação na Igreja Católica, cerca de 43 anos muito produtivos estavam à sua frente. Contudo, primeiro, para receber esta marca indelével de Cristo e da Igreja Católica, “aqueles que pertencem a Cristo Jesus mataram sua natureza humana com todas as suas paixões e desejos” (Gl 5,24).
Aqueles que fizeram jornadas semelhantes ao ministério católico estão bem cientes de que esta não é uma simples transição. Há muitos pontos de convergência entre as igrejas separadas e a Igreja Católica, mas também permanecem diferenças substanciais. Talvez não haja melhor lembrança das profundas dificuldades de reconciliar comunidades cristãs divididas do que a experiência daqueles que cruzam estas fronteiras como indivíduos. E assim a canonização de Newman foi um momento de alegria para aqueles que se preocupam profundamente com a unidade católica. São John Henry Newman é um intercessor “que tem sido tentado de todas as maneiras que nós temos”, mas que mesmo assim avançou com grande fé em direção à nova vida de plena comunhão. Cada um de nós foi profundamente afetado pelo testemunho deste homem, e realmente temos uma enorme dívida de gratidão para com ele.
A contribuição de Newman para a Igreja Católica é simplesmente esmagadora. As mudanças benéficas que ele ajudou a trazer à disciplina da teologia católica transformaram a visão da Igreja e lhe deram confiança para envolver o mundo que resultou em algumas das realizações mais significativas do Concílio Vaticano II. Alguns chamaram Newman de um dos pais mais influentes do Concílio Vaticano II, e nisto nos lembramos de São Hilário de Poitiers dezesseis séculos antes, o exilado que trouxe de volta a melhor parte da tradição cristã oriental para enriquecer a Fé Católica no Ocidente.
Há muitos que compartilham a própria experiência de Newman de encontrar a Igreja Católica, procurando profundamente dentro de sua própria tradição. “Quanto mais vocês tentaram ser bons anglicanos, mais se sentiram atraídos pelo coração e pelo espírito da Igreja Católica” (Certain Difficulties Felt by Anglicans, p. 292). Este é aquele princípio maravilhoso em ação, onde aqueles elementos de santificação e verdade encontrados em outras comunidades eclesiais conduzem inexoravelmente à unidade católica (Lumen Gentium 8).
Todos nós temos um papel a desempenhar nesta vocação reveladora da Igreja Católica, por mais modesta que nos pareça, para atrair todas as coisas boas da criação de Deus para a comunhão perfeita com Cristo, a Cabeça. Ao agitar e contribuir com aqueles dons de fé e serviço que o Espírito Santo já infundiu em nós, contribuímos com nossa parte para a “catolicidade” de toda a Igreja. Este caráter de universalidade é o objetivo para o qual a Igreja Católica se esforça constantemente (Lumen Gentium, 13).
Há muitos que compartilham a própria experiência de Newman de encontrar a Igreja Católica, procurando profundamente dentro de sua própria tradição. Falar do significado ecumênico duradouro de Newman pode parecer estranho quando se considera um homem que mudou sua lealdade tão dramaticamente e que descreveu suas antigas relações como “a separação dos amigos”. Mas temos a graciosa avaliação de Edward Pusey, que já foi o colega mais importante de Newman para o Renascimento Católico no Anglicanismo, mas que no final não pôde segui-lo. Ele chamou a conversão de seu amigo de “talvez o maior evento que aconteceu desde que a Comunhão das Igrejas foi interrompida”. E a razão disso? “Se alguma coisa pudesse abrir seus olhos para o que há de bom em nós, ou suavizar em nós qualquer preconceito errado contra eles, seria a presença de tal pessoa, nutrida e amadurecida em nossa Igreja, e agora removida para a deles” (Liddon, H.P., The Life of Edward Bouverie Pusey, II, 461).
O próprio Newman não estava disposto a aceitar que este deveria ser o fim da história. O Cardeal Avery Dulles resumiu a posição de Newman de forma tão clara: “Aqueles que recebem a graça de reconhecer as reivindicações únicas da Igreja Católica têm o dever de agir. Se não agirem sobre o conhecimento que lhes é concedido, correm sério risco de perder a alma” (Newman, p. 121; ver Lumen Gentium 14). Muitos argumentam agora que o movimento ecumênico deixou de lado este modo de falar: que o caminho da conversão pessoal deve ser tratado com grande discrição, para ser descrito como simplesmente o exercício privado da consciência. Obviamente, devo me demorar sobre este ponto, acreditando firmemente que o verdadeiro progresso ecumênico requer ações proféticas que são resolutamente ordenadas para a Igreja de Nosso Senhor fundada por São Pedro.
Obrigado, São John Henry Newman, por seguir tão fielmente aquela luz bondosa que o trouxe para casa. Reze por nós!
Monsenhor Jeffrey Steenson
Autor: Monsenhor Jeffrey Steenson
Título original:
Publicação em: The Coming Home Network International
Tradução: Italo Medeiros
Revisão: Jeferson Alves
Notas:
¹ O tradutor optou por preservar a versão em Língua Inglesa do nome da personagem em questão por acreditar que a tradução, nesse caso particular, acarretaria prejuízos e perda de valor estético ao conteúdo, assim como considerou o fato de que o uso do nome nesta modalidade é comum em meio ao universo acadêmico e a oralidade popular eclesiástica.
² Mesma particularidade relacionada ao item 1.