Lectio Divina
Eltin Griffin, O. Carm.
Durante o processo de sua conversão, Santo Inácio de Loyola divagava em si mesmo: “o que São Francisco faria no meu lugar? e São Domingos?” – semelhantemente, Eltin Griffin teve a audácia de dizer: “o que o Cardeal Martini faria?”
O cardeal e arcebispo de Milão conduzia uma sessão da Lectio Divina para três mil jovens na Catedral de Milão, todas as primeiras quintas-feiras do mês. Ele já treinou setenta padres para conduzir a Lectio de um modo parecido, para servir outros doze mil jovens em outras igrejas da cidade, na noite da primeira quinta-feira. Martini afirma que é impossível ser um cristão no mundo atual a menos que se esteja em contato com a Palavra de Deus. Meu conhecimento da Palavra seria ínfimo comparado ao do Cardeal Martini, mas isso não é desculpa para que eu fique parado sem fazer algo a respeito.
Neste momento, a única e maior necessidade da Igreja na Irlanda é educar as pessoas a respeito da Palavra de Deus. Há missionários – homens e mulheres – que levam conhecimento da Escritura viajando por todo o país. Um frade dominicano, já nos seus setenta anos de idade, serve em áreas diferentes, três noites por semana, com um curso bíblico que dura dois anos. No entanto, a oferta ainda não pode suprir a demanda. Há uma fome na terra que só pode ser satisfeita através da exposição da Palavra.
Um sistema de apoio
Dizem que a liturgia não atendeu ao que era esperado e prometido, e até existem reivindicações por parte de alguns para reinventá-la. O fracasso, no entanto, talvez não esteja dentro da liturgia como tal, mas sim no fato de que não há um sistema de apoio para ela. As pessoas vêm para a Eucaristia dominical totalmente frias e despreparadas para a estranha linguagem que as leituras apresentam – falta-lhes uma cultura bíblica. E se o pregador também não possui essa cultura, então será mais um caso de “cegos guiando cegos”, e todo mundo vai cair num poço de frustrações.
Até parece simples
Ministrar a Lectio Divina em uma situação de comunidade é uma solução possível para este impasse. A Lectio até parece simples, mas ela pode ser bem envolvente. Leia o texto, leia em voz alta. Busque o significado, repita as palavras e as frases até que elas se tornem parte de você. Medite no texto, para que a Palavra nos desafie em nosso cotidiano, para que ela se conecte com nossas memórias, ambições, esperanças, sonhos, dificuldades e esforços. Isso te levará à oração, talvez até visões, ao louvor em gratidão, ao arrependimento e à súplica; e finalmente, sob o ímpeto da Graça de Deus que excede todo o entendimento sensível, levará à contemplação, conduzida pela Palavra enraizada em seu ser.
Regra de São Bento
A Lectio é um dos métodos de oração mais antigos na história da Igreja, e até há evidências dele na própria Bíblia. Ela foi consagrada na Regra de São Bento e se tornou uma das principais peculiaridades da vida monástica. É possível ministrar a Lectio Divina em privado ou em comunidade. Minha comunidade se dedica à Lectio durante uma hora, uma vez por mês. Mas por que confiná-la às situações de vida religiosa e às casas de retiro? Por que não levá-la às nossas paróquias e introduzi-la ao povo de Deus?
Lectio quaresmal
Certa vez eu ofereci a um pároco amigo meu para conduzir duas sessões de Lectio, manhã e noite da quinta-feira, na paróquia dele durante a Quaresma. Isso também incluía pregar em todas as Missas de um dos domingos para explicar o que era a Lectio e convidar as pessoas para virem e explorar a Palavra. Eles vieram, participaram e gostaram muito! – umas cento e cinquenta pessoas cada manhã e noite de quinta. A construção da igreja era propícia – a Igreja paroquial de Santa Attracta, no bairro de Ballinteer, em Meadowbrook. Nós usamos o mesmo texto todas as quintas – o capítulo quatro do Evangelho de São João, a mulher à beira do poço – e não conseguimos esgotá-lo. Nós lemos o texto inteiro juntos, demos uma pausa, refletimos e pedimos às pessoas para contribuírem com o significado do texto e também com o que o texto significava para elas. Foi uma experiência revigorante ouvir o que eles extraíam do texto e ver a capacidade de explorar o profundo significado espiritual do Evangelho.
A paróquia vizinha ficou com uma certa inveja e requisitou algo parecido por cinco quintas-feiras, nos meses de outubro e novembro. Essa paróquia tinha uma vantagem: eles tinham um movimento de células que se encontravam nas casas das pessoas uma vez por mês. A experiência em células parece ter encorajado eles a contribuir mais com a Lectio. De vez em quando, eu venho tentando fazer isso com outros grupos, me encontrar com leitores de outras paróquias e prepará-los para um dia de reflexão em cada paróquia no Domingo das Missões, na Diocese de Dublin.
Um dos grupos mais conscientes estava em outra paróquia vizinha, em Ballally, na culminância do seu curso sobre Desenvolvimento e Renovação Pastoral. Dessa vez, maior desafio foi estar em uma paróquia depressiva de gente de periferia – falta de segurança e ameaça constante da violência física. Pessoas que vivem numa situação dessas não conseguem ler um texto com facilidade, mas isso não significa que elas são incapazes de ouvir a Palavra. Uma noite em comunidade num lugar assim poderia ser uma experiência completamente desprezível, mas foi uma das mais satisfatórias que eu já tive. Mesmo ir até lá durante a noite foi algo tranquilo e, ironicamente, as melhores inferências da passagem do Evangelho vieram de pessoas que mal iam à igreja.
Melhorando a discussão
Ainda há muito o que melhorar em relação à discussão sobre a melhor forma de apresentar as pessoas à Lectio. Quando eu a apresentei durante o horário de almoço num retiro da Pró-catedral de Dublin, uma senhora me perguntou se eu falava de um retiro para disléxicos, e outra queria saber se a Missa em latim estava voltando. Você não pode cativar todas as pessoas sempre, não importa o quão bom você pense que é.
De qualquer modo, todos nós nos empolgamos muito fácil. Nós retemos o rótulo latino – lectio divina, porque não há termo equivalente em língua inglesa. Mas se você traduzir para “leitura espiritual”, vai se tornar uma coisa completamente diferente, e muito menos “leitura sacra” vai ser um equivalente exato para o que lectio divina quer dizer. Eu descrevi antes a lectio num contexto paroquial, mas a forma clássica dela é uma herança da tradição monástica. Guigo, um monge obscuro do século XII, expõe esse método tradicional da leitura orante[1] das Escrituras como se fosse uma escada ascendendo ao Céu, onde há quatro degraus: lectio, meditatio, oratio, contemplatio.
Uma orientação
O método de Guigo não pretende engessar ninguém em uma estrutura rígida. Ele presume que cada pessoa vai encontrar seu próprio ritmo na oração. O método dele é uma orientação que encorajou a oração de milhares de monges e leigos através dos séculos. Ela foi esquecida após a Reforma por causa da reação católica ao uso protestante da Bíblia e pela ênfase da razão em detrimento do lado afetivo e intuitivo da pessoa humana. A Lectio une mente e coração. Segundo D.H. Lawrence, ela é a “plenitude participante”.
A redescoberta
A Lectio foi redescoberta nos nossos dias, e ela também assume muitas formas à medida que se desenvolve no mundo missionário. Entre elas, há o método Lumko de sete passos que é amplamente usado em diversas partes da África. O método Lumko é especialmente oportuno para pequenos grupos bíblicos, de estudo sobre a fé ou de oração. Deixo minha gratidão aqui à uma série de palestras ministradas em Dublin por um padre carmelita maltês, o Pe. Alexander Vella, no verão de 1993.
O Espírito Santo
Os livros da Bíblia foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo. Assim como a criação, a inspiração não é um evento passado, ela é contínua. O Espírito traz a Palavra do passado ao presente para o leitor. Através do Espírito Santo, Deus está endereçando a Sua Palavra para mim, aqui e agora (Dei Verbum, n°8). “Assim como o Espírito da vida tocou o espírito do Profeta [autor bíblico], assim ele toca o coração do leitor” (Gregório Magno).
Uma união intrínseca
Há uma união intrínseca nas Escrituras. Orígenes descreve Cristo como o “Verbum brevissium”, a Palavra que conclui e abrevia todas as palavras da Escritura. São João da Cruz aponta isso linda e sucintamente em “A Subida do Monte Carmelo” (livro 2, 22-3): “ao dar-nos seu Filho, Sua Única Palavra, Ele nos falou tudo de uma vez em uma só Palavra – e Ele não tem mais nada para dizer.”
O propósito da Lectio
A Lectio possui um propósito triplo: 1) conhecer a Deus em Seus termos, 2) discernir Sua vontade e 3) chegar ao “bem supremo: o conhecimento de Jesus Cristo” (Filipenses 3,8). “A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo” (São Jerônimo).
A disposição que trazemos à Lectio é descrita por Isaías: “ele desperta meus ouvidos para que escute como discípulo” (50,5). Os cinco degraus do que Guigo chama a “Divina Escadaria da Oração” são:
Primeiro degrau: Lectio (Leitura)
Escolha um texto bíblico. Leia-o várias vezes, deixe ele ecoar algumas vezes dentro de você. Lembre-se que Deus está falando contigo, aqui e agora. Esforce-se mais por ouvir o que Ele diz ao invés de refletir. Pergunte: o que o texto significa? O que ele está dizendo?
Segundo degrau: Meditatio (Meditação)
Procure esmiuçar a passagem, ruminando-a (o termo favorito dos monges). Encontre passagens paralelas em outros livros da Bíblia. As notas de rodapé da sua Bíblia podem indicar essas passagens, especialmente os versos dos Salmos.
Encontre associações na sua experiência de vida. Algumas lembranças podem vir à tona, até mesmo lembranças dolorosas procurando cura. Busque discernir como o texto está desafiando você hoje, talvez desafiando seus vícios, seus falsos ídolos, o seu lado não-convertido.
Terceiro degrau: Oratio (Oração)
De acordo com Teresa D’Ávila, a oração é um diálogo. Deus fala e nós respondemos através das palavras do texto no melhor que pudermos. A liturgia é a grande pedagoga nesse quesito, respondendo à Palavra na linguagem da própria Palavra. Nós respondemos nas disposições normais de oração, gratidão, petição, contrição, intercessão, etc.
Quarto degrau: Contemplatio (Contemplação)
Leia o texto novamente, saboreando o que você pode ter deixado escapar nos degraus anteriores. Esteja aberto ao dom divino de compreender aquilo que ultrapassa todo o entendimento sensível. A contemplação também pode ter o significado de ver tudo e todos pelos olhos de Deus.
Voltando ao Guigo, ele usa uma metáfora para explicar os quatro degraus como quatro momentos conectados e correlacionados. “A leitura traz à boca alimento sólido, a meditação mastiga esse alimento, a oração saboreia e degusta, e por fim a contemplação é como a doçura refrescante e que traz alegria”.
E então, ele explica em palavras claras: “a leitura é o exercício exterior, a meditação é o entendimento interior, a oração é o desejo, e por último, a contemplação ultrapassa toda a experiência sensível”. São Gregório Magno nos adverte para “encontrar o coração de Deus na Palavra de Deus”.
São Bernardo escreve:
“Eu guardei a Palavra de Deus como se guarda comida. A Palavra de Deus é um pão vivo, o alimento da alma. O pão que é mantido numa bandeja pode ser roubado, comido por ratos ou mofar, mas assim que é comido, não é necessário temer nenhuma dessas más sortes. Armazene a Palavra de Deus desse modo, porque felizes são os que a guardam. Deixe ela mergulhar no mais íntimo do seu coração e passar para seus afetos e seu modo de vida. Coma muito deste pão e sua alma irá regozijar-se. Nunca esqueça de se alimentar dele, para que seu coração não desfaleça, mas se alimente e se fortaleça com esse manjar tão rico e tão frutífero. Se te apegares à Palavra, a Palavra te protegerá. O Filho de Deus virá até você, e Seu Pai também.”
Notas:
[1] Nota do Tradutor: “leitura orante” é uma tradução possível para lectio divina, em língua portuguesa.
Título original: Lectio Divina
Disponível em: http://carmelites.ie/lectiodivina.html
Tradução: Symon Bezerra