Os teólogos recorrem cada vez mais aos Pais da Igreja para verificar se suas crenças corroboram com o que sempre foi crido pela Igreja, pois não é digna de confiança uma doutrina que se apresenta como novidade.
Podemos afirmar que se uma doutrina é verdadeira, já era há 2000 anos, e, portanto, deve ser encontrada (pelo menos implicitamente) nos Apóstolos e Pais da Igreja. Recorrer a eles é uma boa maneira de resolver algumas confusões doutrinárias.
No séc XVI, os protestantes alegaram (e muitos alegam ainda hoje) que a Igreja Católica havia inventado vários dogmas. Entre os dogmas supostamente inventados pela Igreja estava o da Transubstanciação (a crença de que, na Santa Ceia, o pão e o vinho se transformam realmente no corpo e sangue de Cristo).
São Irineu de Lyon (séc II), discípulo de São Policarpo de Esmirna, que por sua vez foi de discípulo do Apóstolo São João, escreveu uma refutação a uma heresia de sua época conhecida por gnosticismo; a obra recebeu o título de Adversus Haereses (Contra as Heresias). Nessa obra, S. Irineu combate as ideias erradas do gnosticismo sobre Deus e sobre a matéria. Os gnósticos diziam que a matéria era, em si mesma, impura, e chegavam a negar a própria encarnação de Cristo.
A resposta de Irineu aos hereges gnósticos pode nos ajudar na questão da transubstanciação, pois, ao defender a encarnação de Nosso Senhor, S.Irineu acabou deixando para nós um registro fiel do que a Igreja antiga cria acerca do Pão e Vinho consagrados. As partes em negrito referem-se especificamente a Eucaristia:
IV.18,5. Como ainda podem afirmar que a carne se corrompe e não pode participar da vida, quando ela se alimenta do corpo e do sangue do Senhor? Então, ou mudam sua maneira de pensar ou se abstenham de oferecer as ofertas de que falamos acima. Quanto a nós, nossa maneira de pensar está de acordo com a Eucaristia e a Eucaristia confirma nossa doutrina. Pois lhe oferecemos o que já é seu, proclamando, como é justo, a comunhão e a unidade da carne e do Espírito. Assim como o pão que vem da terra, ao receber a invocação de Deus, já não é pão comum, mas a Eucaristia, feita de dois elementos, o terreno e o celeste, do mesmo modo os nossos corpos, por receberem a Eucaristia, já não são corruptíveis por terem a esperança da ressurreição. […]
V.2,2. Estultos, completamente, os que rejeitam toda a economia de Deus, negam a salvação da carne, desprezam a sua regeneração, declarando ser ela incapaz de receber a incorruptibilidade. Mas se esta não se salva, então nem o Senhor nos resgatou no seu sangue, nem o cálice eucarístico é comunhão de seu sangue, nem o pão que partimos é a comunhão com seu corpo. […]
V.2,3. Se, portanto, o cálice que foi misturado e o pão que foi produzido recebem a palavra de Deus e se tornam a Eucaristia, isto é, o sangue e o corpo de Cristo, e se por eles cresce e se fortifica a substância da nossa carne, como podem pretender que a carne seja incapaz de receber o dom de Deus, que consiste na vida eterna, quando ela é alimentada pelo sangue e pelo corpo de Cristo, e é membro deste corpo? […] Como a cepa de videira plantada na terra frutifica no seu tempo e o grão de trigo caindo na terra, decompondo-se, ressurge multiplicado pelo Espírito de Deus que sustenta todas as coisas e que, pela inteligência, são postas ao serviço dos homens e, recebendo a palavra de Deus, se tornam eucaristia, isto é, o corpo e o sangue de Cristo, da mesma forma os nossos corpos, alimentados por esta eucaristia, depois de ser depostos na terra e se terem decomposto, ressuscitarão, no seu tempo, quando o Verbo de Deus os fará ressuscitar para a glória de Deus Pai, porque ele dará a imortalidade ao que é mortal e a incorruptibilidade ao que é corruptível, pois o poder de Deus se manifesta na fraqueza.
Tão forte é a crença de Irineu na Eucaristia, que ele a associa à promessa escatológica da ressurreição da carne. O argumento dele é muito forte: se vocês, gnósticos, crêem que a matéria é impura, porque continuam crendo na Eucaristia? Ou seja, a crença na Eucaristia era assunto perene em toda cristandade da época.
Vale lembrar que nesse período a Igreja estava sendo perseguida pelo Império Romano. Constantino aparece apenas 150 anos depois de Irineu escrever essa obra.
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