Como Newman convenceu-me a tornar-me católico
Dave Armstrong
Quando eu era um dedicado evangélico com grande respeito pela história do Cristianismo, adotei uma visão muito popular e não-católica sobre a história da Igreja: uma concepção vaga, quase mitológica, da Igreja Primitiva como se ela fosse quase protestante, sem nenhum elemento católico. Se os primeiros cristãos não eram tecnicamente protestantes (definidos teologicamente e eclesiologicamente pelo movimento revolucionário do século 16), eles certamente não eram católicos – ou pelo menos era o que eu pensava.
Muitos protestantes (especialmente os evangélicos) datam a queda da Igreja Primitiva em 313, ano da conversão do imperador Constantino e da “paganização” do Cristianismo institucional. Outros colocam essa data por volta do ano 440, no início do reinado do Papa São Leão, o Grande, o qual, aos olhos de muitos historiadores protestantes, foi o primeiro papa no sentido jurídico (seja lá como esses historiadores definem isso). Outra escola acredita que o fim da Igreja Primitiva se deu com a morte do último apóstolo e o final dos escritos bíblicos, algo entre o ano 100 e 200.
Toda essa empreitada para datar a “apostasia” da Igreja institucional e histórica me parece muito com as tentativas arbitrárias de determinar quando começa a vida no embrião, ao utilizar outra data que não seja a concepção, que é claramente o evento biológico determinante. A Igreja, da mesma forma que o corpo e a alma humanos no útero, se desenvolve organicamente desde o início, de forma gradual e consistente, tornando fútil determinar uma data para a sua “queda”. Como a criança não nascida, a essência da Igreja existe desde o início.
Percebendo isso, adotei uma visão mais complexa na qual a Igreja permaneceu cristã durante todo o tempo, mesmo durante a Inquisição e as Cruzadas, apesar de ter perdido sua integridade e autoridade moral neste período. Eu não queria seguir até o final e afirmar que o catolicismo não é cristão porque eu sabia o que a Igreja Católica ensinava sobre as “doutrinas centrais” do Cristianismo, como a Trindade e todas as doutrinas cristológicas, e do seu papel fundamental em preservar a cultura medieval e a própria Bíblia.
Negar que o Catolicismo é cristão (ou afirmar que ele deixou de sê-lo em algum ponto da sua existência) é cortar o apoio onde está o Protestantismo: de fato, isto reduziria o Cristianismo a uma mera religião sem história.
Do contrário, eu pensava que a Igreja Católica “passou o bastão” aos protestantes do século 16, que conseguiram reformar a Igreja universal. Em outras palavras, eu adotei uma visão orgânica da história da Igreja, de maneira semelhante ao historiador protestante Phillip Schaff e de outros teólogos e historiadores reformados, luteranos ou anglicanos, segundo os quais o protestantismo foi um desenvolvimento legítimo, ou melhor, o legado do Catolicismo histórico. Desde então, eu pensava, o Protestantismo se tornou a forma superior e “bíblica” de Cristianismo, dado que a Igreja Católica obviamente foi comprometida teologicamente e moralmente com seu extremamente agressivo Concílio de Trento.
Era esta a minha visão da história do Cristianismo no início de 1990, quando comecei a ministrar um grupo de discussão ecumênico em minha casa. Um amigo, John McAlpine, que eu conheci no movimento pró-vida, me surpreendeu uma noite quando disse que a Igreja Católica nunca contradisse a si mesma em seus dogmas. Para mim, isto era obviamente inacreditável, então eu embarquei imediatamente num projeto de pesquisa para refutar de uma vez por todas a noção de que alguma igreja cristã poderia se dizer infalível.
Durante esta pesquisa eu descobri muitos dos estudos “anti infalibilidade” clássicos, que são citados a todo momento: o anglicano The Infallibility of the Church (originally 1890), de George Salmon; Letters of Janus and Letters of Quirinus (1869-1870), de Johann von Dollinger; e Infallible? An Inquiry (1971), de Hans Kung. O trabalho de Salmon foi refutado definitivamente duas vezes por B.C. Butler: em seu The Church and Infallibility: A Reply to the Abridged “Salmon” (1901), e numa série de artigos na The Irish Ecclesiastical Record (1902) [1].
Apesar disso, os polemistas protestantes Norman Geisler e Ralph MacKenzie ainda afirmavam em 1995, em sua crítica ao Catolicismo Roman Catholics and Evangelicals: Agreements and Differences[2], que o livro de Salmon “nunca foi realmente respondido pela Igreja Católica”. Eu fiquei maravilhado pela acusação de um anti-católico profissional de que eu não conhecia os melhores argumentos protestantes contra a Infalibilidade e o Catolicismo em geral – fazendo com que minha conversão fosse uma decisão sem fundamento!
A verdade é o oposto: estes livros são o ápice da crítica protestante à Igreja, como atestam Geisler e MacKenzie [3]. Além deles, as opiniões heréticas do historiador Dollinger são frequentemente utilizadas por polemistas ortodoxos contra a Infalibilidade papal. Eu conheço isso muito bem por causa dos debates com cristãos ortodoxos na Internet.
George Salmon revelou em seu livro sua profunda ignorância não apenas da doutrina da infalibilidade papal, mas até mesmo do básico sobre desenvolvimento da doutrina:
“Os romanistas…trocaram a tradição que seus antecessores consideravam a base do seu sistema, por esta nova fundação chamada desenvolvimento… A teoria do desenvolvimento da doutrina é, em resumo, uma tentativa de permitir que os homens que perderam o rumo da História recuperem o controle dela…antes a Igreja ensinava que a sua doutrina nunca mudava” [4]
Nesta passagem Salmon luta quixotescamente contra um espantalho, enquanto tenta de modo sofístico forçar seus leitores a aceitarem uma falsa dicotomia: que o desenvolvimento da doutrina implica mudança na essência ou substância da doutrina, contrariando o ensinamento de que a Igreja é a guardiã da tradição apostólica e dos dogmas imutáveis. Mas esta não é a noção católica de desenvolvimento da doutrina, nem de Newman, a quem Salomon respondia com seu livro.
Também não é verdade que o desenvolvimento foi uma doutrina “nova” criada pelo Cardeal Newman. Podemos provar isso pelos escritos de São Vicente de Lerins, um dos Pais da Igreja, falecido em 450 dC, na sua clássica exposição do desenvolvimento conhecida pelo nome de Comonitório:
“Então não há progresso na religião da Igreja de Cristo? Certamente que há … mas é progresso verdadeiro, não mudança de fé. Progresso significa algo que avança em si mesmo. Mudança é quando algo é transformado em outra coisa. É necessário, portanto, que a compreensão, o conhecimento e a sabedoria cresçam e avancem fortemente e de maneira poderosa… O progresso da religião nas almas se parece com o crescimento dos corpos, que no decorrer dos anos evoluem e se desenvolvem, mas ainda permanecem os mesmos… Apesar de que no passar do tempo algo evoluiu daquelas primeiras sementes e agora se expandiu sob cuidadoso cultivo, nenhuma característica daquelas sementes mudou. Claro que a aparência, a beleza e a distinção foram acrescentadas, mas a natureza de cada uma permanece” [5]
Santo Agostinho (354-430), o maior dos Pais da Igreja, a quem os protestantes reverenciam grandemente, expressou pensamente semelhante em seu Cidade de Deus (16,2,1) e no Comentário ao Salmo 54 (n. 22). Então podemos ver que o conceito de desenvolvimento da doutrina existia há pelo menos 14 séculos antes de Newman. George Salmon perde sua credibilidade quando se trata de história cristã, Infalibilidade ou desenvolvimento da doutrina por essa e muitas outras razões, conforme demonstrado por seus críticos católicos. Apesar de Geisler e MacKenzie apresentarem compreensão muito mais acurada da ideia de Newman sobre desenvolvimento da doutrina, eles afirmam que o livro de Salmon é “uma crítica penetrante da teoria de Newman” [6]
Não está em nosso escopo analisar minuciosamente as falhas dos estudos “anti-infalibilidade” supracitados, nem a minha obstinação em usá-los para tentar refutar historicamente a Igreja Católica. Em resumo, na maioria dos casos não compreendem, ou não aplicam corretamente, a doutrina oficial da Igreja sobre a Infalibilidade, como definida pelo Primeiro Concílio do Vaticano em 1870, ou então selecionam desonestamente fatos históricos e citações patrísticas. Estas últimas práticas dispararam na literatura anti-católica atual. Eu tenho minha culpa nisso. O preconceito consegue cegar alguém até mesmo contra erros básicos de lógica.
O Primeiro Concílio do Vaticano de 1870 define a infalibilidade papal nestes termos (na Constituição Dogmática Pastor Aeternus):
(…)ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado:
3074 – O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra – isto é, quando, no desempenho do múnus de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica que determinada doutrina referente à fé e à moral deve ser sustentada por toda a Igreja –, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual o Redentor quis estivesse munida a sua Igreja quando deve definir alguma doutrina referente à fé e aos costumes; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são, por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis.
Como vemos, a definição conciliar define a infalibilidade papal em termos muito restritos e específicos, e são exatamente estes termos que os polemistas anti-católicos ignoram ou distorcem quando trazem à tona exemplos famoso de papas que supostamente caíram em heresia, como Honório, Vigílio e Libério. Nenhum destes exemplos permanece quando submetido ao exame histórico e lógico. Eles só “funcionam” quando apresentados isoladamente, sem mostrar a resposta católica que demonstra como tais exemplos são inadequados e não violam o dogma da Infalibilidade Papal.
Posteriormente, o Segundo Concílio do Vaticano (1962-65) não alterou nem uma palavra deste ensinamento, apesar do que dizem católicos liberais ou católicos nominais, sem formação. Referindo-se ao decreto sobre o Papa do Vaticano I, o Concílio declarou:
Porém, o colégio ou corpo episcopal não tem autoridade a não ser em união com o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, entendido com sua cabeça, permanecendo inteiro o poder do seu primado sobre todos, quer pastores quer fiéis. Pois o Romano Pontífice, em virtude do seu cargo de vigário de Cristo e pastor de toda a Igreja, tem nela pleno, supremo e universal poder que pode sempre exercer livremente. A Ordem dos Bispos, que sucede ao colégio dos Apóstolos no magistério e no governo pastoral, e, mais ainda, na qual o corpo apostólico se continua perpetuamente, é também juntamente com o Romano Pontífice, sua cabeça, e nunca sem a cabeça, sujeito do supremo e pleno poder sobre toda a Igreja (63), poder este que não se pode exercer senão com o consentimento do Romano Pontífice. Só a Simão colocou o Senhor como pedra e clavário da Igreja (cfr. Mt. 16, 18-19)[7-Lumen Gentiun, 22]
Retornando para a minha própria jornada intelectual e espiritual, vou dar um exemplo para ilustrar as falhas do meu pensamento anti-católico: rapidamente constatei que os primeiros cristãos tinham um entendimento muito “literal” da Eucaristia (a Presença Real de Cristo), da mesma forma que a Igreja tem. A evidência histórica apoiando este fato é tão abundante que até os piores oponentes da Igreja raramente tentam negá-la. Mas eu, sem nenhum constrangimento, me rebaixei ao dizer que S. Agostinho, o maior dos Pais da Igreja, tinha um entendimento simbólico da Eucaristia.
Eu me baseei na sua noção de compreender o sacramento como um símbolo, ou sinal. Eu não entendia, no entanto, que eu criava arbitrariamente uma falsa dicotomia entre o “sinal” e a realidade da Eucaristia, dado que S. Agostinho – quando consideramos todos os seus escritos sobre o tema – claramente aceitava a Presença Real. Para Agostinho, a Eucaristia é símbolo e realidade. Não há contradição.
Uma pesquisa rápida na Bíblia confirma este princípio. Por exemplo, Jesus cita o “sinal de Jonas”, comparando os 03 dias e noites do profeta no estômago do peixe à Sua própria morte na terra (Mateus 12:38-40). Neste caso, os dois eventos descritos como sinais foram reais. Jesus também menciona os “sinais” quando fala da Sua segunda vinda (Mateus 24:30-31), que todos os cristãos acreditam ser um evento literal, não simbólico.
Protestantes costumam cair no mesmo tipo de erro quando se deparam com as muitas citações patrísticas que exaltam a santidade e importância das Escrituras, e disso concluem que os Pais da Igreja eram adeptos do princípio protestante Sola Scriptura (Apenas a Bíblia) quando, de fato, o estudo aprofundado revela que os Pais davam igual importância às Escrituras e à Tradição. A importância histórica da Bíblia nos embates contra os hereges, por exemplo, não significava que a Tradição estava separada da Bíblia, dado que os Pais da Igreja apelavam rotineiramente à Tradição para refutar definitivamente os hereges. A Tradição era o argumento final dos Pais, a “pá de cal” contra os hereges. E este argumento final não era bíblico, mas histórico, baseado na autoridade da Igreja apostólica, contrariando assim a abordagem do Sola Scriptura (NT: que utilizaria apenas a Bíblia para tentar comprovar uma posição).
Exemplos na literatura patrística não faltam. Por exemplo, Agostinho deixa claro em várias ocasiões que considera a supremacia Tradição, ao mesmo tempo em que aceitava a primazia da Bíblia. Em outras palavras, elas eram dois lados da mesma moeda para ele e a Igreja Primitiva, não oponentes nesta questão da autoridade, como diz o Protestantismo:
“A autoridade das Escrituras, fortalecida pelo consenso de tantas nações, e confirmada pela sucessão dos Apóstolos, bispos e concílios, está contra você.” [8]
“Nenhuma pessoa sábia contraria a razão, nenhum cristão contraria as Escrituras, nenhum amante da paz contraria a Igreja” [9]
“Seja de onde veio esta tradição, nós devemos acreditar que a Igreja não acreditou nela em vão, mesmo que a autoridade expressa das Escrituras não seja utilizada.” [10]
“Em consequência, ainda que não exista nenhum exemplo concreto deste assunto nas Escrituras, seguimos a mesma verdade das Escrituras ao praticar o que a Igreja universal considerou bom, pois é a Igreja quem atesta a autoridade das Escrituras. Assim como a Santa Escritura não pode enganar, qualquer um que teme ser confundido pela obscuridade desta questão deve recorrer a esta mesma Igreja, estabelecida sem ambigüidade pela Santa Escritura. ” [Contra Crescônio, 33 – 11]
Desconhecendo estes fatos – ou me recusando a aceitá-los – eu prossegui em minha pesquisa agressiva, assumindo que a Igreja primitiva era muito mais protestante que católica, e que a Igreja Católica se corrompeu com o passar do tempo (mesmo continuando cristã pelo critério mínimo das “doutrinas centrais”). Esta é a concepção padrão dos protestantes, especialmente aqueles mais alinhados com o pensamento reformado tradicional. Eles assumem, praticamente sem qualquer análise direta dos fatos e fontes primárias, que a Igreja Católica adicionou à fé, aquela “fé que uma vez foi dada aos santos” (Judas 1:3).
Meu amigo católico John, confrontando com o peso das evidências históricas altamente seletivas que eu compilei, ficou frustrado. Ele ainda insistia para eu ler “Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina”, do John Henry Newman. Do pouco que eu conhecia o autor, sabia que ele foi um grande historiador da Igreja, muito respeitado por todos, independente da sua afiliação teológica.
Então eu comecei a ler o Ensaio em outubro de 1990, depois de ser “amaciado” pela leitura dos autores católicos como o historiador da cultura Christopher Dawson, a heroína pró-vida Joan Andrews, o famoso convertido e monge trapista Thomas Merton, e o maravilhoso livro The Spirit of Catholicism do Karl Adam, descrito pelo historiador luterano Jaroslav Pelikan como a melhor explicação e defesa da fé católica num único volume. O timing era perfeito.
Poucos meses antes eu havia concluído, depois de intensas discussões no meu grupo ecumênico, que a Igreja Católica possuía a mais elevada e sublime teologia moral de todos os grupos cristãos. Logo depois (Julho de 1990), eu me convenci do erro que era a contracepção, especialmente ao constatar que até 1930 todos os cristãos, de todos os grupos, condenavam tal prática. Foram os anglicanos que, na sua Conferência de Lambeth em 1930, permitiram o uso de métodos contraceptivos para “casos extremos”. Esta foi a minha primeira grande mudança de opinião, mas eu não esperava o que estava por vir.
Charles Harrold, editor de uma antologia das obras de Newman, escreve o seguinte sobre o Ensaio:
“Ele foi composto em 1845, quando Newman estava indeciso entre duas formas de Cristianismo…Seu objetivo era explicar e justificar aquilo que os protestantes tratavam como corrupção do credo cristão primitivo, e provar que eram desenvolvimentos legitmos da fé…Numa série de analogias eloquentes e eruditas, ele tenta demonstrar que as altamente complexas doutrinas atuais da Igreja têm sua origem no depositum original da fé, que se desenvolveu progressivamente através de desdobramentos e explicações” [12]
Agora o leitor pode perceber, dado a descrição do meu estado intelectual em 1990, que o Ensaio provavelmente era o trabalho mais apropriado que eu poderia ler naquela época, independente da possibilidade dele me convencer ou não. Ele era “a nata” das explicações que a Igreja Católica dava para o “crescimento” das suas doutrinas através da História, para desgosto dos protestantes.
Finalmente eu lia alguma resposta às minhas pesquisas, feitas sob preconceitos. Newman escreveu, logo no início:
“Por mais bela que seja esta religião (o Catolicismo) em teoria, sua história, nos dizem, é a sua maior refutação…
Respondendo a esta objeção, este Ensaio demonstra que apesar de algumas grandes variações de doutrina durante os seus longos 1800 anos de História, estas surgiram naturalmente, conforme uma lei, harmonicamente e sempre análogas à revelação das Escrituras. Estas, ao invés de provar uma desvantagem (das variações de doutrina), constituem um argumento em seu favor, testemunhando a Providência Divina no modo e nas circunstâncias em que ocorreram.” [13]
Eu já estava muito curioso para saber o que Newman diria. A sua própria metodologia era tão nova que garantiu meu contínuo interesse. Ele continua:
“E pelo menos uma coisa é certa: seja o que for que a História ensina, seja o que for que ela omite, seja o que for que ela exagera ou diminui, o que ela diz ou não diz, pelo menos o Cristianismo da História não é o Protestantismo. Se alguma vez existiu alguma verdade segura, é esta. E o Protestantismo… como um todo, sente isso, e sentiu isso desde o início. A prova disso encontra-se na sua determinação…. de dispensar a história do Cristianismo, e de formar um Cristianismo apenas da Bíblia: os homens nunca deveriam ignorar a História, a menos que ela os contrarie … aprofundar-se na História significa cessar de ser um protestante.”
“O protestante precisa provar que, se tal sistema doutrinário tal como ele prega existiu nos primórdios do Cristianismo, ele foi completamente varrido da História como que por um dilúvio… Considere suas doutrinas, sua visão peculiar de puritanismo, de formalidade,… sua noção de fé, … sua negação da virtude dos sacramentos, ou dos cargos eclesiásticos, ou da Igreja visível… as Escrituras como único instrumento válido de ensinamentos religiosos, e deixe-o considerar até que ponto a Antiguidade, tal como nós conhecemos, contêm esses ensinamentos” [14]
“Que o Protestantismo não é o Cristianismo da História, isto é fácil determinar.” [15]
Isto foi claramente um ataque frontal a todo o edifício da minha eclesiologia protestante: o exato oposto do meu argumento, com a explícita declaração de que era o Catolicismo, não o Protestantismo, que possuía a evidência histórica a seu favor. E eu respeito a história o bastante para tremer diante desta afirmação. Eu também sabia muito bem que Newman apresentaria uma quantidade enorme de evidências históricas para apoiar sua tese, uma vez que o livro diante de mim tinha 445 páginas!
Depois de afirmações tão polêmicas, Newman faz analogias brilhantes para provar seu ponto. O primeiro é sobre a doutrina do Purgatório, comparada com a doutrina do Pecado Original, que todos os protestantes aceitam:
“Alguma noção de sofrimento ou punição depois desta vida, no caso dos fiéis falecidos, ou alguma forma vaga do Purgatório, tem em seu favor o consenso dos 04 primeiros séculos da Igreja” [16]
Newman enumera nada menos dezesseis Pais da Igreja que adotavam a ideia de Purgatório em alguma forma. Já a Doutrina do Pecado Original não tem tamanho consenso:
“Ninguém pode dizer que há um testemunho dos Pais da Igreja, igualmente abundante, para a Doutrina do Pecado Original [17]. Apesar do ensino de São Paulo sobre este assunto, a doutrina do Pecado Original não está presente no Credo Apostólico ou no Credo Niceno [18]”
Este é um dado crucial. É um grave problema ao Protestantismo, uma vez que ele rejeita doutrinas que possuíam grande consenso na Igreja Primitiva, como o Purgatório, o Papado, bispos, a Real Presença, o batismo infantil, a sucessão apostólica e a intercessão dos santos, enquanto aceita doutrinas muito pouco mencionadas pelos Pais da Igreja, como o Pecado Original. Isso para não falar das suas doutrinas exclusivas, como o Sola Fide (Justificação apenas pela fé) e a justificação extrínseca (vinda de fora), que não existiam durante toda a história da Igreja até Lutero, como admitido pelo proeminente apologista protestante Norman Geisler:
“… estes insights valiosos da doutrina da Justificação foram perdidos durante muito tempo, e foram os reformadores que recuperaram a verdade bíblica… durante o período patrístico e a Idade Média tardia, o conceito de justificação judicial foi perdido… Entretanto, as formulações teológicas de pessoas como Agostinho, Anselmo e Tomás de Aquino não impossibilitavam a redescoberta desse aspecto judicial da doutrina paulina de Justificação. …
alguém pode ser salvo sem acreditar que a justiça imputada (ou justificação judicial) é uma parte essencial do verdadeiro Evangelho. Senão, poucas pessoas teriam sido salvas no período entre o apóstolo Paulo e a Reforma, dado que ninguém mais ensinou a justiça imputada (vinda de fora) neste período! [19]”
Por outro lado, os protestantes aceitam doutrinas que ainda estavam em desenvolvimento na época: o Cânon do Novo Testamento é um bom exemplo (e também não é bíblico) de doutrina, pois só foi finalizado em 397 dC. A divindade de Cristo só foi proclamada dogmaticamente em 325, a Santíssima Trindade em 381, as Duas Naturezas de Cristo (divina e humana) apenas em 451, todas em concílios ecumênicos aceitos pela maioria dos protestantes. Então o desenvolvimento das doutrinas é um fato inegável para protestantes e católicos.
A dificuldade dos protestantes (considerando a História da Igreja importante, mesmo que não possua valor autoritativo) é determinar uma lógica objetiva, não arbitrária, para aceitar algumas doutrinas enquanto rejeita outras. Não basta dizer que algumas doutrinas não são bíblicas, pois seria necessário explicar porque a maioria dos primeiros cristãos acreditavam nelas; porque crenças como o Cânon do Novo Testamento e o Sola Scriptura foram adotados apesar de não ser bíblicos, e por fim, porque tantas denominações protestantes discordam entre si se a Bíblia é tão fácil de ser interpretada pelo leigo.
A respeito do Cânon do Novo Testamento escreve Newman:
“Se tratando do Novo Testamento, católicos e protestantes os consideram como divinamente inspirados; mesmo assim….os graus de evidência variam muito de livro para livro… Por exemplo, a Epístola de S. Tiago… Orígenes, do século III, é o primeiro a mencioná-la entre os gregos, mas ela não foi citada por nenhum latino até o século IV… Novamente: a Epístola aos Hebreus, aceita pelos orientais, não foi aceita pelo Ocidente até o tempo de S. Jerônimo…Novamente, S. Jerônimo nos diz que em sua época, por volta do ano 400, a Igreja Grega rejeitava o Apocalipse, enquanto o Ocidente aceitava este livro. De novo: o Novo Testamento consiste de 27 livros… destes, 14 não são mencionados em lugar algum até 80 ou 100 anos após a morte de S. João, entre os quais estão Atos, 2 Coríntios, Gálatas, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, e Tiago. Dos outros 13 livros, 05 são citados apenas uma única vez nesse período: o Evangelho de S. João, Filipenses, 1 Timóteo, Hebreus e 1 João. Então, por que aceitamos o Novo Testamento baseados na autoridade da Igreja dos séculos IV e V? … O século V comenta os textos obscuros dos séculos anteriores. [20]”
Newman faz outra analogia brilhante entre o desenvolvimento “tardio” das doutrinas marianas e do Papado, com o Credo e o Cânon bíblico:
“O reconhecimento eclesiástico do lugar da Virgem Maria na Economia da Graça… aconteceu no quinto século, depois da definição da Divindade de Cristo no quarto século… Para honrar a Cristo…, para defender a verdadeira doutrina da Encarnação,… para assegurar a fé na humanidade do Eterno Filho, o Concílio de Éfeso afirmou que a Virgem Maria é a Mãe de Deus… O título ‘theotokos’, ou Mãe de Deus, era familiar dos cristãos primitivos, e foi usado por Orígenes, Eusébio… S. Atanásio, S. Ambrósio, S. Gregório Nazienzo e S. Gregório de Nissa. [21]
Se o poder imperial dificultou a realização dos Concílios, ele também restringiu o poder do Papado. Do mesmo modo, o Credo e o Cânon continuaram indefinidos até o império reduzir sua opressão tirânica sobre a Igreja [22]”
O Venerável Cardeal define então 07 características de todos os verdadeiros desenvolvimentos doutrinários:
“É necessário…destacar certas características dos desenvolvimentos fiéis…sua presença serve como um teste para discriminar entre eles e as corrupções… Eu ouso estabelecer Sete Características…conforme segue: o desenvolvimento não é uma corrupção se ele preserva o mesmo tipo, os mesmos princípios e a mesma organização; se do seu início é possível antecipar suas fases subsequentes, e sua fase posterior protege a anterior; se ele tem poder de assimilação e avivamento, se é vigoroso do início ao fim. [23]
Uma corrupção surge no exato momento que o desenvolvimento cessa de ilustrar, de explicar melhor, e começa a confundir o conhecimento daquilo que lhe precedeu…. Um desenvolvimento legítimo…ilustra o corpo de doutrinas que o precede…ele naturalmente conserva o que veio antes dele. [24]”
Depois de considerar as analogias de Newman entre as doutrinas protestantes e as doutrinas católicas, e especialmente as Sete Características, ficou claro para mim que o Protestantismo era uma corrupção maciça do Cristianismo histórico, ao invés de ser um desenvolvimento consistente, como eu pensava anteriormente. Foi uma mudança brusca de paradigma. O Protestantismo inegavelmente introduziu doutrinas radicalmente novas, como Sola Fide, Sola Scriptura, sectarianismo, julgamento privado, a noção de uma Igreja invisível e não hierárquica, o batismo e a Eucaristia simbólicos, todas elas eram novidades, não reformas, que supostamente traziam de volta as práticas da Igreja Primitiva. Essas doutrinas, no entanto, simplesmente não podem ser encontradas na Igreja Primitiva.
A tese de Newman chega ao climax neste comentário:
“Se é verdade que os princípios da Igreja tardia são os mesmos da primitiva, então… a Igreja tardia tem mais semelhanças que diferenças com a primitiva, pois princípios originam doutrinas. Por isso, aqueles que acusam a Igreja Católica atual de corromper a teologia primitiva são forçados a descobrir alguma diferença de princípio… por exemplo, que o direito ao julgamento privado era garantido na Igreja Primitiva e foi proibido depois, ou que a Igreja atual é racionalista enquanto a primitiva se dirigia apenas pela fé.
Além disso…as muitas heresias….em algum momento…violaram os princípios pelos quais a Igreja veio a existir e que a Igreja ainda defende. Os arianos [25] e nestorianos [26] negaram a interpretação alegórica de certas partes da Bíblia; os gnósticos [27], eunomianos (N.T.: ou anomoeanos) [28] e os maniqueístas [29] afirmavam que a fé substituía o conhecimento… A Regra Dogmática…foi posta de lado por todas essas seitas que, como nos diz Tertuliano, diziam que se fundamentavam na Bíblia; e o princípio Sacramental foi violado, ipso facto, por todos que se separaram da Igreja…Do mesmo modo, o desprezo pelo mistério, pela reverência, pela devoção, pela santidade, são características do espírito herético. E se tratando do Protestantismo fica claro como ele inverteu os princípios da teologia católica [30].”
Em outras palavras, foram os hereges antigos que alegavam viver segundo a Bíblia, desconsiderando a interpretação feita por corpos eclesiásticos com autoridade. Protestantes olham para o passado e se referem à “Igreja Primitiva” implicitamente assumindo que essa Igreja era unificada, mas não conseguem perceber que essa mesma Igreja é o ancestral da Igreja Católica atual, que professa os mesmos princípios desde aquela época (sucessão apostólica, certa compreensão da relação orgânica entre Igreja, Bíblia e Tradição, sacramentalismo, sacerdotes, Papado, os concílios, a hierarquia eclesiástica, a comunhão dos santos, etc).
Não é preciso acreditar que aconteceu um rompimento entre as doutrinas da Igreja Católica atual e da Igreja Primitiva. Basta compreender a natureza do desenvolvimento doutrinário, onde as doutrinas se desenvolvem porque são mais claramente compreendidas e explicadas, sem sofrer nenhuma transformação em sua essência. Mas o Protestantismo significa uma transformação radical dos princípios, não constituindo um desenvolvimento legítimo segundo o critério de Newman. Uma deturpação (ou corrupção) pode significar adição ou subtração, contando que denote o rompimento com os precedentes.
Além do mais, é interessante notar que aquilo que consideramos a “ortodoxia” da Igreja Primitiva nada mais é que a posição da Sé Apostólica, que se mostrou acertada várias e várias vezes, muito além de qualquer coincidência. Basta observar a quantidade de seitas heréticas dos primeiros séculos, e a quantidade de denominações cristãs hoje.
Este e os outros fatos narrados acima, bem como meus comentários ao Ensaio de Newman, foram o que me levaram à Igreja Católica (juntamente com a profundidade e beleza da imutável moral católica). Eu respeito o suficiente a lógica, a teologia histórica e a História da Igreja para resistir ao que me parece um argumento imbatível.
Eu descobri, com a ajuda inestimável do Cardeal Newman, que a Igreja Católica possui de longe a mais consistente posição eclesiológica, além da proeminência apostólica. Juntamente com meus estudos simultâneos sobre o que aconteceu no século XVI (especialmente sobre as razões da Revolução Protestante e as motivações dos seus líderes), e com o que eu descobri sobre as concepções teológicas e morais dos Reformadores (como o Sola Fide, o Sola Scriptura, uma visão libertina dos votos do clero, o apoio ao divórcio, mentiras, linguagem baixa, desrespeito pela autoridade e pelos precedentes, saques e violência, iconoclastia, anti-intelectualismo, etc), qualquer resistência que eu ainda tivesse ao Catolicismo seria como brincar de jogo das cadeiras no Titanic.
Aproximadamente um mês depois de terminar a leitura do Ensaio, enquanto lia a meditação do Cardeal “Hope in God the Creator” (Esperança em Deus, O Criador – tradução livre), minhas últimas barreiras emocionais foram removidas. Eu finalmente percebi que havia entrado nos portões de Roma (e do Cristianismo de toda a História) e, sinceramente, nunca tive a menor vontade de olhar para trás.
Dave Armstrong é ex-protestante e apologista católico na Internet.
Extraído de APOLOGISTAS CATÓLICOS
NOTAS DE RODAPÉ:
1. Butler: New York, Sheed & Ward, 1954, 230 pages. Um amigo conseguiu obter os artigos da Irish Ecclesiastical Record na livraria de um conhecido seminário evangélico de Chicago.
2. Geisler, Norman L. and Ralph E. MacKenzie, Roman Catholics and Evangelicals: Agreements and Differences, Grand Rapids, Michigan: Baker Books, 1995, p.206, que chama o livro de “clássica refutação à infalibilidade papal” Veja também p.459.
3. Geisler and MacKenzie, ibid., pp.206-207.
4. Salmon, George, The Infallibility of the Church, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (originalmente 1888), pp.31-33 (veja também pp.35, 39).
5. 23:28-30, citado em Jurgens, William A., The Faith of the Early Fathers (Collegeville, Minnesota: The Liturgical Press, 1979), vol. 3, p.265.
6. Geisler and MacKenzie, ibid., p.459.
7. Vatican II: Dogmatic Constitution on the Church, chapter III: “The Church is Hierarchical,” sections 18, 22. From edition / translation by Austin Flannery (Northport, New York: Costello Publishing Co., 1988 revised ed., pp.370,375). (N.T.: eu usei Lumen Gentiun, 22)
8. Contra Fausto, 8,5.
9. The Trinity, 4,6,10.
10. Carta 164 a Evódio de Uzalis.
11. Contra Crescônio, 33-11.
12. Harrold, Charles F., A Newman Treasury, London: Longmans, Green and Co., 1943, pp.83-84.
13. Todas as citações do Ensaio são da edição publicada pela University of Notre Dame Press, 1989, com prefácio de Ian Ker da edição de 1878; pp.vii-viii.
14. Newman, John Henry, Historical Sketches, vol.1: The Church of the Fathers, London: 1872, p.418.
15. Newman, Essay, ibid., pp.7-9.
16. Ibid., p.21
17. Ibid., p.21.
18. Ibid., p.23.
19. Geisler and MacKenzie, ibid., pp.247-248,503.
20. Newman, Essay, pp.123-126.
21. Ibid., p.145.
22. Ibid., p.151.
23. Ibid., pp.170-171.
24. Ibid., pp.199-200,203.
25. Arianismo: uma heresia que afirmava que Jesus Cristo era apenas uma criatura, não igual com o Pai
26. Nestorianismo: heresia que negava a Natureza Divina de Cristo.
27. Gnosticismo: heresia que professava possuir um conhecimento secreto (“gnose”) superior à fé, à Revelação ou à razão.
28. Eunomianismo: braço do Arianismo, afirmava que Jesus era inferior ao Pai, e que o Espírito Santo foi criado por Jesus.
29. Maniqueísmo: uma forma de gnosticismo; acreditava no dualismo cósmico entre o bem e o mal, e praticava um severo ascetismo.
30. Newman, Essay, pp.353-354.
FONTE
ARMSTRONG, Dave. How Newman Convinced me to Become a Catholic <http://www.patheos.com/blogs/davearmstrong/2015/11/how-newman-convinced-me-to-become-a-catholic.html>
PARA CITAR
ARMSTRONG, Dave. Como Newman me convenceu a tornar-me católico. Disponível em <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/protestantismo/845-como-newman-me-convenceu-a-tornar-se-catolico> Desde 15/01/2016. Tradutor: João Marcos Visotaky Junior.