As perguntas são de Dave Armstrong e as respostas do Beato John Newman, ex-anglicano que converteu-se ao catolicismo.
Os trechos foram retirados de The Letters and Diaries of John Henry Newman.
O que significa o título de Maria a “Nova Eva”?
A comparação entre Eva e Maria é, em todos os Pais da Igreja, totalmente alegórica, não literal. Nosso Senhor é Adão alegoricamente – e Maria é Eva. Havendo semelhança, há relação alegórica. Os termos Cordeiro de Deus, o Rei de Israel, o Elias que havia de vir, a Nova Jerusalém são todos alegorias; interpretamos o novo pelo velho. Dizemos que Nosso Senhor foi um sacrifício, pois ele é alegoricamente um Cordeiro – e Maria foi sem pecado, pois ela foi alegoricamente Eva.
(v. 22; To Robert Charles Jenkins, 26 Feb. 1866)
O que é o dogma da Imaculada Conceição de Maria?
A Imaculada Conceição de Maria é isto: que Nossa Senhora foi isenta do pecado original… Em alguns casos raros, como o de São João Batista, esta graça é dada antes do nascimento; por isso São João Batista não nasceu em pecado original. Como sua alma existia antes da visita de Nossa Senhora a sua mãe, até aquele momento ele estava em pecado original; portanto, ele foi concebido em pecado original, sua conceição não foi imaculada. Por conceição queremos dizer criação da alma, quando ela é pela primeira vez unida ao corpo, e se torna uma pessoa. No primeiro instante de sua existência – na sua conceição – João Batista estava no estado de degradação no qual Adão nos colocou, mas quando a graça divina foi dada a ele no momento da Visitação, ele foi retirado, ipso facto, do seu estado caído. Se a graça tivesse sido dada a ele, não três meses antes do nascimento, mas no primeiro momento de sua existência, então seria correto dizer que ele foi concebido sem pecado original, ou seja, que ele teve imaculada conceição. Isso é o que cremos ter acontecido com a Santa Virgem. No momento em que sua alma foi criada, ela recebeu graça, de modo que ela nunca esteve sem a graça divina, nunca esteve debaixo do poder do pecado, mesmo do pecado original, ela sempre foi imaculada.
(v. 22; To Lady Chatterton, 2 Oct. 1865)
Quanto à questão de ela ser imaculada e mesmo assim poder ter pecado em Adão, você vai encontrar a explicação nos meus panfletos. Ela pecou em Adão, mas antes de ela vir a ser, o pecado lhe foi tirado. O filho de um rebelde [Adão] pode ser livre da herança maldita. Toda a posteridade de um rebelde sofre nele por antecipação, mas, antes que sua descendência [Maria] nasça, sua má herança pode lhe ser retirada, ficando livre do mau desde seu nascimento.
(v. 24; To Mrs. Helbert, 28 Sep. 1869)
Porque a Imaculada Conceição de Maria só foi proclamada em 1854?
É importante notar que a Bula não definiu o dogma, apenas definiu que ele é parte da revelação, e, portanto, faz parte da Fé.
(v. 16; To J. D. Dalgairns, 22 Jan. 1855)
Por que os católicos creem na Imaculada Conceição de Maria?
Fico surpreso que vocês tenham dificuldade com a Imaculada Conceição. Você disse que essa doutrina “é um obstáculo para os anglicanos”, mas eu, por exemplo, nunca senti qualquer dificuldade – pelo contrário, sempre me pareceu a mais natural e necessária das doutrinas. Não consigo entrar na mente dos que a acham difícil…
Em um sermão publicado em 1835, dez anos antes de me tornar católico, eu disse ‘Qual era a santidade e graça daquela natureza humana na qual Deus formou Seu Filho tão puro; sabendo que “o que é nascido da carne é carne” e que “não se pode trazer coisa limpa daquilo que é impuro”?’ Fui acusado de defender a doutrina da Imaculada Conceição, pois estava claro que liguei ‘graça’ com a humanidade de Maria, como se graça e natureza nunca estivessem separadas nela. Tudo que pude dizer em resposta foi que não havia nada contra essa doutrina nos 39 Artigos.
São João Batista foi livre do pecado original três meses antes do seu nascimento – qual o problema, portanto, em crer que Nossa Senhora foi livre do pecado desde sua conceição? A graça de Deus, nesse caso, foi dada seis meses antes do que em João Batista. Por acaso há algo absurdo nisso?
Se me pedem uma prova de que essa doutrina era aceita na Igreja Antiga, eu respondo que isso estava implícito na crença geral de que a Virgem era sem pecado, e que, mesmo que não se falasse tanto dela, quando ela era mencionada, era sempre lembrada sob esse aspecto: “sem pecado”.
Bastaria lembrá-los da passagem muito conhecida de Sto Agostinho, na qual ele diz que ele não pode mencionar pecado algum quando se fala de Maria, como se as duas coisas fossem antagônicas. Mas o que para mim tem sido mais forte é a série de passagens dos Pais mais antigos, nas quais Maria é contrastada com Eva. São Justino (160), São Irineu (170), Tertuliano (200) todos confirmam essa relação de contraste – e todos os Pais mais tardios herdaram essa Tradição. O ponto em que esse contraste é feito é exatamente o da obediência – mas quando Irineu diz ‘a humanidade foi rendida à morte por uma virgem, e foi salva também por uma Virgem’, ele com certeza insinuou que, como Eva foi sem pecado, Maria também o foi. Por que, então, seria difícil supor que Maria teve o mesmo privilégio de Eva? – Eva teve uma conceição imaculada…
Eu acho que estou certo em dizer que a única dificuldade histórica com essa doutrina é a oposição de São Bernardo e São Tomás – mesmo que seja claro para mim que eles não estavam se opondo ao que a Igreja professa hoje… Os dois santos em questão estavam se opondo a algo que ninguém hoje pensa em defender.
(v. 19; To Arthur Osborne Alleyne, 30 May 1860)
Por que a Imaculada Conceição é tão difícil para os protestantes?
A dificuldade que os protestantes têm para receber essa doutrina repousa nisto: eles a consideram uma doutrina muito mais isolada do que nós. Há doutrinas tão intimamente ligadas com outras, que elas são na verdade partes ou aspectos de uma coisa só; portanto, provar uma é provar a outra. Por outro lado, há doutrinas tão distintas entre si, que cada uma requer sua própria prova, e provar uma não é de modo algum provar a outra.
Por exemplo, a doutrina da divindade de Nosso Senhor e a do Espírito Santo, uma é totalmente independente da outra. Uma não implica a outra; provar uma não é provar a outra. Outro exemplo, Jesus nascer de Maria é uma doutrina, a santidade de Maria já é outra doutrina. A primeira tende a implicar a segunda, mas, se é verdade que devem ser provadas por argumentos, então devem ser provadas uma por uma. Nesses dois casos, dizer que a segunda doutrina é extensão da primeira, e que isso é suficiente como prova, pouca gente concorda.
Por outro lado, se eu digo ‘Deus é onipotente e onisciente’, ‘o Filho de Deus é eterno e insondável’, e ‘o Espírito Santo é a unidade do Pai e do Filho, e Ele é Deus’, colocando em conjunto essas proposições, cada uma sendo parte de uma única ideia, podemos dizer que provar uma é, de algum modo, provar a outra…
É nisso que reside a diferença da visão protestante e católica sobre o dogma da Imaculada conceição. Os católicos não a veem como uma doutrina independente, mas sim como uma família de doutrinas que estão intimamente ligadas, enquanto os protestantes consideram essa doutrina separada das outras, e pedem provas dela como se isso fosse a única coisa que soubéssemos da Virgem Maria. Os católicos, por outro lado, entendem essa doutrina como não mais que um complemento ao que já entendem de Nossa Senhora. […]
E por que os protestantes divergem dos católicos nesse modo de ver a Imaculada Conceição? Eu penso que isso vem da diferença entre suas visões sobre o pecado original. Os protestantes consideram o pecado original como uma infecção da natureza, como se a natureza humana agora não fosse mais como era antes da queda. Portanto, ser concebido sem pecado original seria como ter uma natureza diferente dos outros seres humanos. […] Os católicos acreditam que as potências do homem foram prejudicadas pela queda, não admitem, porém, essa ideia de infecção da natureza. Eles acreditam (ou melhor, são livres para acreditar) que a Virgem Maria e Nosso Senhor nunca estiveram com o pecado original, mas ambos tinham a natureza caída de Adão. Pois pecado original, de acordo com eles, consiste na privação da graça de Deus, a qual foi um acréscimo externo à natureza de Adão.
A presença da graça divina é o princípio justificador que faz a alma aceitável a Deus, portanto, há degraus de justificação, como há degraus de graça. Nenhuma graça seria capaz de destruir o pecado original na visão protestante; sempre permaneceria uma mancha, mesmo que não imputada. Na visão católica, pelo contrário, quando a graça chega na alma, destrói todo pecado original.
Para o protestante, não adianta nada dizer que São João Batista experimentou dessa graça 6 meses depois de sua conceição; mas para um católico é um argumento em favor de que Nossa Senhora foi salva do pecado original, pois ele que crê que a graça na alma no momento da conceição é de fato uma retirada do pecado original e o Batista, que é inferior a ela em dignidade, recebeu essa graça três meses antes do nascimento.
Essa diferença de visão é a causa do que lhe pareceu tão estranho. Um protestante pensaria que um questionador é injusto por pedir uma prova distinta da Escritura de que “a divindade e humanidade se uniram em uma pessoa, para nunca ser dividida”. Do mesmo modo um católico não pode compreender porque os protestantes fazem tanto barulho sobre uma doutrina que para eles é tão natural, tão inteligível, como a Imaculada Conceição. Qualquer passagem dos Padres que fale vagamente da graça dada a Maria, afirma de certo modo essa doutrina; pois esse privilégio de não ter o pecado original é a própria plenitude da graça. Mas, para um protestante, isso não é suficiente para prová-lo, pois nem toda a graça concebível pode superar, como ele pensa, uma falha da natureza.
Qualquer passagem dos Pais, como a de Santo Agostinho, que geralmente a separa do pecado, sugere que ela não tinha pecado original, que é justamente a doutrina católica; para os protestantes essas passagens não têm tal efeito, porque o pecado original, para eles, não é um estado diferente do de Adão, mas uma natureza diferente da de Adão.
E, além disso, para o católico, (pelo menos antes que ele mergulhe em controvérsias passadas), é tão pouco surpreendente que a Igreja defina este ponto e declare que ele é de fide, como o Credo de Atanásio chamar o Espírito Santo de Deus. Para o protestante, por outro lado, é “uma adição injustificada e audaciosa para os artigos de fé” etc etc.
(v. 19; To Arthur Osborne Alleyne, 15 June 1860)
Qual a evidência histórica para Imaculada Conceição?
Quanto à antiguidade da doutrina. Nas primeiras eras, o pecado original não era formalmente especificado. No quarto século, Pelágio negou e foi refutado e denunciado por Santo Agostinho. Na época de Santo Agostinho a questão foi colocada precisamente; se Nossa Senhora estava sem pecado original ou não. Até o seu tempo, e depois de seu tempo, era comum dizer ou implicar que Maria não tinha pecado, em termos vagos. Os primeiros Padres, São Justino, Santo Irineu, etc., contrastam com Eva, enquanto eles contrastam nosso Senhor com Adão. Ao fazer isto – 1. eles, às vezes implicam, às vezes insistem, o ponto que Eva pecou quando provado, e Maria não pecou quando provada; e 2. eles dizem que, ao não pecar, Maria teve um papel real na obra de redenção, de uma forma que nenhuma outra criatura teve participação. Isso não vai tão longe como realmente dizer que ela teve a graça de Deus desde o primeiro momento de sua existência e nunca esteve sob o poder do pecado original, mas comparando-a com Eva, que foi criada sem pecado original e isso acaba estando implícito.
Em seguida, pouco depois de Santo Agostinho, o III Concílio foi realizado contra Nestório e declarou Maria como a Mãe de Deus. A partir deste momento, a linguagem dos Padres é muito forte, embora vaga, sobre sua imaculabilidade. No tempo de Maomé, essa doutrina parece ter sido ensinada no Oriente, pois acho que ele menciona isso no Alcorão. Na Idade Média, quando tudo foi submetido a um exame rígido de um caráter de raciocínio, levantou-se a questão de saber se a doutrina era coerente com a Virgem Maria tendo um pai e uma mãe humanos – e objeções sérias foram sentidas a esse respeito. Algun definiram as palavras “Imaculada Conceição” diferentemente do que eu fiz acima e, em conseqüência, negaram o dogma. São Bernardo e São Tomás, desta maneira, opunham-se a ele e aos dominicanos. Uma longa controvérsia se seguiu e durou muitos séculos. Por fim, em nosso tempo, foi definido nesse sentido em que expliquei as palavras acima – um sentido que São Bernardo, Santo Tomás e os dominicanos não negaram. A mesma controvérsia sobre o sentido de uma palavra ocorreu no exemplo do primeiro Concílio Geral em Nicéia. O Credo Niceno usa a palavra “Consubstancial” para proteger a doutrina da divindade de nosso Senhor contra Ário, que o grande Conselho de Antioquia, 70 anos antes, havia repudiado como um símbolo de heresia. Da mesma maneira, os grandes santos repudiaram as palavras “Imaculada Conceição”, de tomá-las em um sentido diferente daquele que a Igreja aceitou e sancionou.
(v. 22; To Lady Chatterton, 2 Oct. 1865)
Como Maria pode ter um salvador se ela foi imaculada?
“Em Adão todos morrem”, mas ainda não existia nenhum homem quando Adão caiu. Eles morreram antes de viverem. Como toda a raça poderia morrer, à vontade de Deus, antes que eles existissem, assim um de toda a raça poderia (ao mesmo tempo) não apenas morrer antes de existir, mas também tornar-se viva novamente. E esta última observação sugere-nos que Maria deve ser considerada realmente redimida pelo seu Filho, embora na verdade ela não tivesse pecado a ser perdoado. Sim: ela faz parte daqueles por quem nosso Senhor sofreu e salvou; ela não só caiu em Adão, mas ela se elevou em Cristo, antes de começar a ser. […] Na verdade, os católicos a consideram como o sinal e instância mais importante do poder e plenitude da graça redentora, pois seu filho mereceu por ela aquela graça inicial que foi para ela a prevenção do pecado original.