A EUCARISTIA EM JOÃO 6

Dr Robert Sungenis
Tradução: Pablo Monteiro

Extraído e traduzido com permissão do autor do livro Not by Bread Alone: The Biblical and Historical Evidence for the Eucharistic Sacrifice of the Catholic. Publicado originalmente em dexterampatris.wordpress.com

Provavelmente, a evidência bíblica católica mais notável que leva à doutrina da Transubstanciação é todo o capítulo de João 6. Quando comparado com os evangelhos sinóticos, o relato da Eucaristia em João 6 é de fato único, moldado como é pelo tema principal de seu Evangelho – a Encarnação de Cristo. Assim, João apresenta Jesus não como um bebê em Belém, mas como a palavra eterna de Deus que se fez carne (cf. Jo 1,1-18). Em todo o evangelho de João, é a Divina Encarnação de Jesus que desencadeia a hostilidade mais ruidosa dos judeus. João 6 não faz nenhuma menção específica da Ceia do Senhor ou do Partir do Pão. Em vez disso, João concentra-se no aspecto vivificante da Eucaristia (em oposição à ênfase de São Paulo na morte de Cristo em 1Co 11:26, que foi escrito décadas antes) e indiretamente conecta seu relato com eventos na vida de Jesus, como a festa de casamento de Caná (João 2), a multiplicação dos pães (João 6) ou a videira e os ramos (João 15). Enquanto São Paulo enfatiza a natureza comunitária da Eucaristia fornecida pela Igreja (cf. 1Co 11,17-22), João concentra-se no destinatário individual. Visto que Jesus promete que cada destinatário será “ressuscitado dentre os mortos no último dia” (Jo 6: 39-44), Ele exige que em troca cada um deve cultivar não apenas uma união com uma instituição religiosa, mas uma relação pessoal e espiritual união com Jesus.[1] No entanto, apesar deste tema de “relação pessoal” que soa protestante, João 6 é de uma forma estranha o mais sacramental de todos os relatos eucarísticos. Não é de surpreender, portanto, que a passagem tenha se tornado uma das mais controversas entre católicos e protestantes. Para ambos os lados, a passagem apresenta dificuldades, uma vez que Jesus e seu narrador João parecem estar se deslocando, sem muita atenção, entre o simbólico e o literal. A fonte de controvérsia tem sido se essas mudanças ocorrem e, em caso afirmativo, exatamente onde.[2]

JOÃO 6: 1-47

LINGUAGEM SIMBÓLICA DE JESUS

Conforme a cena se desenrola nos versículos iniciais de João 6, vemos Jesus alimentando os cinco mil com a produção milagrosa de pão e peixe. O versículo 2 revela que as pessoas seguiram Jesus aqui até a costa do Mar da Galileia precisamente porque viram Seus milagres anteriores de cura de enfermos. O versículo 15 afirma que esse milagre os surpreende tanto que desejam fazer de Jesus seu rei, mas Ele foge para as montanhas. Os versículos 16-24 registram o próximo milagre de Jesus enquanto ele caminha sobre as águas em direção ao barco dos discípulos durante uma tempestade. Embora a princípio apavorados, os discípulos acabaram levando Jesus para o barco e pousaram em Cafarnaum (a cidade que Jesus viveu, mas que, exceto por um centurião gentio, era conhecida por sua incredulidade (Mt 4:13; 8:5ss; 11:23). Não é de pouca importância que Jesus decida realizar o milagre de andar sobre as águas na frente de seus apóstolos, pois Ele vai dizer-lhes algo sobre Si mesmo que eles nunca o ouviram revelar e que certamente exigirá muita fé para aceitar.

Agora, do outro lado do lago, começando no versículo 25 e seguintes, as pessoas que comeram o pão multiplicado novamente procuram Jesus. Depois de encontrá-lo, Jesus imediatamente retruca que eles não O estão procurando porque viram os milagres, mas porque tinham bastante comida para comer. Jesus aproveita para ensiná-los a não se preocupar com tal comida, mas a buscar o alimento que dá vida eterna, que Ele, o Filho do Homem, lhes dará. Quando eles perguntam o que Ele quer dizer, Jesus lhes diz no versículo 29: “A obra de Deus é esta: acreditar naquele que ele enviou.”

O versículo 29 apresenta a primeira das duas seções do capítulo. Esta primeira seção está preocupada simplesmente com a crença em Jesus, a Pessoa. O pré-requisito para qualquer tipo de relacionamento com Deus é a fé, e não há substituto. Infelizmente, é precisamente esta virtude que falta ao povo. Quer Jesus faça uma dúzia de milagres para eles ou, como veremos em breve, diga-lhes que devem comer Sua carne e beber Seu sangue, eles simplesmente não acreditarão. A incredulidade deles é tão previsível que Jesus comenta sobre isso várias vezes no capítulo (6:37, 44, 65). Por sua dureza de coração, Deus os cegou (cf. Rm 11,7-8).

Embora as pessoas tenham acabado de testemunhar o milagre da multiplicação do pão, e tenham visto outros milagres antes disso, eles já estão começando, nos vs. 30-33, a mostrar suas inclinações para a incredulidade, pedindo a Jesus outro milagre para provar Sua identidade. Eles comparam as afirmações de Jesus ao maná milagroso que seu antepassado Moisés forneceu a seus ancestrais no deserto cerca de 1500 anos antes. Ignorando sua manobra, Jesus mais uma vez direciona suas mentes para Deus, que é a fonte do verdadeiro pão, ou seja, Aquele que desceu do céu, Jesus Cristo, não Moisés.

Em v. 34, quase como se não O ouvissem, os judeus pedem a Jesus que lhes dê o pão que Ele está descrevendo, talvez não percebendo que Ele acabou de dizer que Ele é o pão. Percebendo sua ignorância, Jesus lhes diz mais claramente em v. 35, “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim nunca terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede.” Isso é semelhante ao ensino de Jesus no Sermão da Montanha, no qual disse: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mt 5:6), ou o de Es 24:21: “Aqueles que comem de mim terão fome de mais, e aqueles que bebem de mim terão sede de mais.” O ensino e o significado, pelo menos até este ponto, é puramente simbólico, isto é, Jesus está usando metáforas para explicar verdades espirituais.

É aqui que precisamos introduzir algumas distinções importantes. Observe que até agora na narrativa, Jesus não mencionou as palavras “comer”, “beber”, “carne” ou “sangue”. Ele apenas diz que é o pão do céu; o pão da vida; e que Ele veio do céu para fazer a vontade do Pai. Jesus não usa a palavra “comer” até o v. 50, “carne” até v. 51, “sangue” até o v. 53, e “beber” até o v. 53. Na verdade, quando Jesus diz: “quem crê em mim nunca terá sede” (v. 35), a metáfora nos leva a pensar em beber água, mas certamente não em beber sangue. Até agora, os judeus não estão reclamando das metáforas “faminto” e “sedento”. Jesus, pelo menos nesta seção, está se concentrando estritamente em fazê-los acreditar que Ele é enviado do Pai, mas as pessoas simplesmente não estão compreendendo.[3]

Para explicar o enigma da incredulidade, Jesus começa no v. 37 a nos alertar que o Pai não “deu”[4] essas pessoas a ele. Essa revelação torna-se um fio contínuo ao longo do discurso, ocorrendo novamente nos vs. 44-45 (“Ninguém pode vir a mim, a menos que o Pai que me enviou o traga…” e vs. 64-65 (“… ninguém pode vir a mim se não lhe tiver sido dado pelo Pai”). No entanto, Jesus também explica que o Pai espera que os homens o busquem (v. 35: “Aquele que vem a mim”; v. 40: “todo aquele que olhar para o Filho e crer nele terá a vida eterna”; v. 45: “todo aquele que escuta o Pai e dele aprende vem a mim”). O que aprendemos com essa explicação é que a fé pessoal é uma interação dinâmica entre o Pai e aqueles que O buscam. Deus atrai; os homens respondem crendo. Se eles não acreditarem, Deus os endurecerá.

Refletindo sobre a observação de Jesus de que Ele é o “pão da vida” (v. 35) e que Ele “desceu do céu” (v. 38), os judeus, nos v. 41-42, reclamam entre si, ressaltando que Jesus é apenas filho de José e Maria. Jesus não se preocupa em abordar esta pista falsa; antes, Ele reafirma o princípio permanente: o Pai atrai as pessoas a Jesus e elas serão levantadas no último dia. No v. 45 Ele ainda explica que eles não têm desculpa para não entendê-Lo, visto que é uma verdade antiga, confirmada nos escritos dos Profetas, que “todos serão ensinados por Deus.” Jesus tira isso de Is 54:13, o capítulo após Isaías 53 que, ironicamente, profetiza o sofrimento de Cristo nas mãos dos judeus. A citação de Is 54:13 prenuncia a Nova Aliança em que Deus diz: “Colocarei minhas leis em suas mentes e as escreverei em seus corações… o homem não ensinará mais a seu próximo, porque todos saberão mim.”[5] Em contraste, muitos dos judeus da época de Jesus preferiam permanecer sob a Antiga Aliança e buscar a Deus por meio de suas leis rituais em vez de por meio da fé.[6]

JOÃO 6: 48-58

A LINGUAGEM NÃO SIMBÓLICA DE JESUS

Começando em v. 48, Jesus agora prepara o palco para a segunda seção de Seu discurso – a seção não simbólica. Apesar das objeções dos judeus, Ele reitera: “Eu sou o pão da vida”, as mesmas palavras que proferiu nos v. 35.[7] No v. 51, no entanto, Ele começa, pela primeira vez no discurso, a falar sobre realmente comer esse pão. Jesus, portanto, começa a transição da mera crença espiritual para realmente compartilhar Dele fisicamente. No próximo versículo, ele acrescenta que Ele é pão “vivo” e que esse pão é Sua “carne”.[8] Como observado acima, Jesus não usou as palavras “comer” e “carne” em Seu diálogo de abertura (vs. 25-47). Os judeus percebem a mudança de expressão de Jesus e imediatamente se opõem à sua exigência de que não apenas acreditem Nele, mas realmente comam Sua carne. O versículo 52 registra: “Então os judeus começaram a discutir fortemente entre si: ‘Como pode este homem dar-nos a sua carne a comer?’” Observe que os judeus não estão se opondo à menção de Jesus a “pão”, mas à Sua menção de “carne.”

Neste ponto, alguns podem objetar que o uso repentino de “carne” por Jesus no versículo 51 não se referia necessariamente a comer sua carne, visto que Jesus subsequentemente disse “a qual darei pela vida do mundo”. Naturalmente, pode-se plausivelmente interpretar esta frase como se referindo à obra geral de expiação que Cristo realizou na cruz.[9] O problema com essa interpretação, no entanto, é que nenhum desses casos, na verdade nenhuma passagem do Novo Testamento, jamais diz a alguém para “comer a carne” ou “beber o sangue” de Cristo simbolicamente para alcançar a vida eterna.[10]

Este é um ponto crucial, o clímax de todo o relato. Jesus tem apenas duas alternativas: (1) Ele pode voltar ao uso de pão e água como metáforas, como as metáforas do v. 35 que representam crer pessoalmente Nele e no Pai, e assim acalmar o medo dos judeus de que Ele estava sugerindo que eles realmente comessem Sua carne; ou (2) Ele pode ignorar suas objeções e continuar a desenvolver ainda mais enfaticamente o que os judeus já entendem claramente como uma ordem direta para que comam literalmente Sua carne. A alegação católica, é claro, é que Jesus escolheu a última opção. Ele não diz aos judeus que eles o estão interpretando mal ou que ainda está se referindo à crença pessoal Nele. Em vez disso, ele não apenas ignora a objeção dos judeus, mas adiciona uma descrição mais precisa de como eles devem comer Sua carne, o que só pode confirmar que os judeus, pensando que Jesus deseja que as pessoas do mundo comam Sua carne, realmente entenderam Ele corretamente.

Jesus continua a remover todas as dúvidas razoáveis sobre Seu significado de mais cinco maneiras: (1) no v. 53, Ele adiciona a ordem de “beber seu sangue” e “comer a carne”, e ao fazer isso (2) muda a imagem de beber água espiritual do v. 35 para beber fisicamente Seu sangue e (3) troca a palavra “comer”, de uma que poderia ser interpretada física ou simbolicamente por outra cujo único significado é físico; (4) Ele repete esta nova forma verbal mais quatro vezes nos próximos quatro versos (v. 54-58), reforçando assim o comando de comê-lo fisicamente; (5) no risco de perder todos os seus seguidores, até mesmo seus discípulos e apóstolos, Ele não retrai ou suaviza Seu ensino.

Com relação a (1), os judeus tinham sido ordenados desde o início de sua história a não comerem sangue. Levítico 3:17 declara: “Esta é uma ordenança duradoura para as gerações vindouras, onde quer que você mais: você não deve comer gordura ou sangue”. Levítico 7:26-27 declara: “E onde quer que vivam, não deves comer o sangue de qualquer pássaro ou animal. Se alguém comer sangue, deve ser eliminado do seu povo” (cf. 1Sm 14,31-32). Consequentemente, o que os judeus haviam entendido que Jesus estava esperando que fizessem era totalmente repreensível. O mero pensamento de beber sangue, qualquer sangue, não fazer parte da mentalidade judaica. Até mesmo o Concílio de Jerusalém em Atos 15 recomendou que os gentios se abstivessem de comer qualquer sangue nas refeições para não escandalizar os judeus.

Além disso, era um entendimento comum no Judaísmo e em todo o Antigo Testamento que “comer a carne ou beber o sangue” era uma imagem reservada para significar o ataque de um inimigo e/ou um julgamento de Deus na forma de morte. Por exemplo, Nm 23:24 afirma: “O povo se levanta como uma leoa que não descansa até que devore sua presa e beba o sangue de sua vítima.” Isso se refere ao ataque de Israel contra seus inimigos sob a vigilância de Deus. Da mesma forma, Ez 39:17-20 declara: “…Chame toda espécie de pássaro e todos os animais selvagens. Você vai comer a carne de homens poderosos e beber o sangue dos príncipes…”, que se refere ao julgamento de Deus sobre a nação de Gogue.[11] Com efeito, tomar a palavra de Jesus figurativamente neste ponto equivaleria a Ele dizer:“ Aquele que me injuria tem vida eterna.”[12]

Em relação ao (2) acima, exceto aqueles relativos à Eucaristia (Mateus 26; Marcos 14; Lucas 22; João 6; 1 Coríntios 10-11), nenhuma passagem do Antigo ou do Novo Testamento ordena que alguém beba sangue, nem mesmo como uma metáfora. No entanto, a Bíblia usa beber água literalmente (Jo 4:13; Rm 12:20) e figurativamente (Jo 4:10-15; 7:38). Portanto, uma vez que o resto do Novo Testamento nunca usa beber sangue como uma metáfora para crer em Jesus, certamente os oponentes alegam que é uma metáfora em João 6. Da mesma forma, em nenhum outro lugar além de João 6 o Antigo ou o Novo Testamento ordenou a qualquer pessoa que coma a carne de Deus ou de Cristo, mesmo como uma metáfora.[13]

Além disso, quando em outros relatos joaninos, Jesus pretende que Seu público compreenda Seu uso de alimentos como meras metáforas, Ele os diz diretamente. Por exemplo, em Jo 4:31-38, os discípulos exortam Jesus a comer um pouco. Jesus responde: “Tenho comida para comer que você não sabe nada.” Visto que eles não conseguem entender Seu significado simbólico, Jesus explica mais: “Minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e terminar Sua obra”. Nos vs. 35-38, Jesus imediatamente escolhe uma metáfora relacionada, aquela de plantar e colher, para explicar como o reino de Deus progride na terra. Obviamente, Jesus está dizendo a Seus ouvintes nesta referência para não entenderem fisicamente Seu uso de alimentos e grãos.

Outro exemplo ocorre quando Jesus diz aos discípulos: “Tenham cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus” (Mt 16:6-12). Os discípulos pensam que Ele está se referindo à falta de pão. Jesus os corrige, dizendo “Como é que você não entende que eu não estava falando com você sobre pão?”, explicando que Ele está se referindo ao ensino dos fariseus, não ao cardápio deles. Ele usa a imagem do fermento apenas para mostrar que o ensino dos fariseus pode proliferar em muitas doutrinas falsas, assim como o fermento faz o pão crescer e se espalhar.

Considerando relatos como esses, esperaríamos que Jesus, se tivesse a intenção de mero simbolismo, desse o mesmo tipo de explicação aos discípulos em João 6 sobre comer Sua carne e beber Seu sangue. Se Ele não estivesse comandando literalmente comer Sua carne, mas apenas uma crença espiritual Nele, Ele teria dito: “Como é que você não entende que eu não estava falando com você sobre minha carne e sangue reais?” As situações são exatamente paralelas para a nossa investigação, visto que aqui em Jo 6:67-69 também é aparente que os doze apóstolos ainda não entenderam o que Jesus significa comer Sua carne e beber Seu sangue. Pedro, o porta-voz usual do grupo, meramente renuncia aos apóstolos para aceitar os ensinamentos de Jesus, sendo que eles não têm outro lugar para ir e porque já “acreditam e sabem que Ele é o santo de Deus.” Observe que, ao contrário dos judeus, Pedro e os apóstolos aceitam sem questionar o ensino de que Jesus é de Deus e que Ele possui as palavras da vida eterna; pois eles já haviam alcançado esse nível de compreensão muito antes dos eventos de João 6. Portanto, só podemos concluir que em João 6 eles enfrentaram uma luta diferente – algo que os tentaria a abandonar sua crença anterior em Jesus, assim como tentou os outros discípulos que eventualmente deixaram Jesus, apesar de sua crença anterior. Esse “algo” não pode ser outro senão a nova revelação de que eles devem literalmente comer Sua carne e beber Seu sangue, pois antes de João 6 a mera crença de que Jesus era de Deus e que Ele convidou o homem para a vida eterna não representava nenhum obstáculo para o Apóstolos. Embora eles não entendam muito bem o que tudo isso significa, os apóstolos aceitam a nova revelação por causa de sua crença anterior e confiança em Jesus. Só mais tarde, quando realmente celebrarem a Eucaristia após Jesus deixar a terra, eles entenderão todo o seu significado e implicações.[14] Isso ajuda a explicar por que João 6 é dividido em duas seções, a primeira enfatizando a necessidade de uma crença espiritual em Jesus como o pão da vida e a segunda enfatizando a revelação do ato físico de comê-lo, pois, como ficou claro com os apóstolos, deve-se primeiro acreditar no primeiro antes que possa compreender o último. A maioria dos judeus, é claro, não acreditava no último porque nunca acreditaram no primeiro.[15]

Apesar de uma variedade tão elaborada de fatos a respeito de João 6, alguns oponentes tentam descartar seu significado afirmando que Jesus também diz coisas como “Eu sou a porta” (Jo 10:7). Somos informados de que, uma vez que é óbvio que Jesus não está afirmando ser uma porta literal com uma maçaneta e dobradiças, devemos então interpretar tais passagens metaforicamente, isto é, Jesus é o caminho da salvação assim como uma porta é a entrada em uma casa.[16] Quando apropriado, é claro, tal interpretação simbólica é concedida. Jesus fala figurativamente muitas vezes em Seu ensino, assim como grande parte do restante das Escrituras. No entanto, para forçar uma interpretação simbólica em uma passagem simplesmente porque outra passagem emprega um significado simbólico é uma falácia flagrante na hermenêutica bíblica. Além disso, a diferença entre os capítulos 6 e 10 de João é suficientemente grande para justificar a interpretação literal do primeiro, pelas seguintes razões:

1. Um significado figurativo de João 6 já é levado em consideração na teologia católica. Em João 6:29-47, Jesus está claramente se concentrando em uma interpretação figurativa do pão. Jesus não é literalmente um pedaço de pão. Assim, “Eu sou o pão” pode se basear na mesma interpretação figurativa de “Eu sou a porta”, ou seja, Jesus é o único alimento espiritual que permite a entrada no reino.

2. A linguagem de João 6 contém uma mudança dramática de uma redação meramente figurativa para uma redação intensamente literal, como até os próprios judeus notam diretamente (v. 52). João 10 não tem tal desenvolvimento nem questões interpretativas internas.

3. Uma vez que João 6 muda para um uso mais literal de suas palavras, continua ainda mais enfaticamente com a linguagem física, como “comer”, “beber”, “carne”, “sangue” e “real” (vs. 51-58), o que não é feito em João 10.

4. Interpretar João 6:54-58 como uma ordem para comer Sua carne e beber Seu sangue tem precedente no Novo Testamento, visto que a mesma ordem é repetida, literalmente, em todos os evangelhos sinópticos e em 1 Coríntios 10-11, algo para o qual “Eu sou a porta” não pode fazer uma reivindicação. João 10 é a única vez em que Jesus diz: “Eu sou a porta”, ou mesmo referido como uma porta em todas as Escrituras, portanto, simplesmente não há precedência para interpretá-lo a não ser figurativamente.[17]

Com relação a (3) acima, a troca de verbos gregos usados para “comer” é altamente significativa e provavelmente a característica mais importante que leva à conclusão de que Jesus está se referindo a literalmente comer Sua carne e beber Seu sangue. Isso é evidente na tradução das palavras de Jesus por João, de modo que a palavra grega mais específica para mastigar, “trôgô”, é escolhida no lugar da palavra grega mais genérica para comer, “phagô.”[18] O hebraico tinha várias palavras para comer, mas a LXX nunca usou trwgw para traduzi-las. A razão provável é que o hebraico não tinha uma palavra específica para “mastigar”, “mastigar” ou “roer”. Mesmo Sl 41:9, que Jesus cita em Jo 13:18, usa o esθiwn artouς mou, o particípio de esθiw, do qual fagw (phago) é derivado. Semelhante a João 6:53-54, isso demonstra a razão pela qual fagw e trwgw podem ser trocados em vários contextos, e porque os Sinópticos podem optar pelo primeiro em vez do último.

João reforça o significado da mudança usando trôgô quatro vezes: v. 54, “Quem quer que coma (trôgôn) minha carne”; v. 56, “Quem quer que coma (trôgôn) minha carne”; versículo 57, “Quem comer (trôgôn) a minha carne, mesmo aquele”; v. 58, “Quem quer que coma (trôgôn) este pão.”[19] Considerando o significado exclusivo de trôgô para representar alguém que está se envolvendo no processo de mastigar o alimento que está consumindo,[20] simplesmente não há razão lógica para Jesus mudar do mais genérico phagô ao mais gráfico trôgô, a menos que seja Seu desejo fazer uma observação explícita sobre o consumo físico e confirmar a suspeita dos judeus de que Ele de fato os ordena, literalmente, que comam Sua carne. Se Jesus estivesse tentando manter um significado simbólico para Suas palavras (significado que Ele começou no v. 35), Ele teria continuado a usar phagô, uma vez que das duas palavras gregas, phagô é a única que às vezes é usada simbolicamente.

Afirmamos esses fatos, porém, com a condição de que o uso simbólico de phagô não seja de forma alguma estabelecido no contexto de João 6.[21] Phagô aparece pela primeira vez no v. 49, que se refere à ingestão física do maná no deserto. Aparece pela segunda vez no versículo seguinte, quando Jesus fala de si mesmo como o “pão do céu, que um homem pode comer (phagô) e não morrer.” Antes dessas duas referências, houve ampla oportunidade de estabelecer o uso simbólico de phagô no diálogo inicial de João 6, quando Jesus se referia a si mesmo como o pão do céu e do qual as pessoas deveriam ter fome e sede (v. 25-48) , mas, significativamente, Ele não o fez. Portanto, se a primeira instância de phagô é usada para se referir à alimentação física (v. 49), o ônus da prova recai sobre os oponentes que desejam mudar o phagô para um significado simbólico na próxima declaração de Jesus (v. 50).[22]

Nossa interpretação é apoiada pelo intercâmbio contínuo de phagô e trôgô no restante do diálogo. O versículo 53 afirma: “A menos que você coma (phagete[23]) da carne do Filho do Homem e beba Seu sangue”, e o versículo 58 afirma: “não como seus pais comeram (ephagon[24]) e morreram.” O uso de phagô por Jesus no v. 53 é reforçado em ambos os lados com significados de phagô que se referem exclusivamente à alimentação física (v. 49 e v. 58, respectivamente). A alegação, então, dos oponentes, de que o uso de phagô no v. 53 é simbólico, não tem base contextual nem suporte etimológico, pois João 6 nunca usa phagô em um sentido simbólico antes dos versículos cruciais em questão, ou seja, vs. 54-58.

O significado exclusivamente físico de phagô também confirma por que o v. 54 usa a palavra mais específica para comer fisicamente, trôgôn (“Aquele que come minha carne”), imediatamente após o v. 53 fazer uso do phagete (“A menos que você coma a carne do Filho do Homem”). Obviamente, as duas palavras apontam para a mesma realidade, ou seja, comer Jesus fisicamente. Desde o uso de phagô em v. 53 mostramos que Jesus já tem em mente uma alimentação física, o acréscimo de um termo mais gráfico para alimentação física, trôgôn, não é nenhuma surpresa, visto que Seu propósito é responder à pergunta dos judeus sobre se Ele está realmente se referindo a comê-lo fisicamente ou não. Mesmo quando a mais geral das duas palavras, phagô, é usada no v. 51, os judeus já entendem que Jesus se refere a comê-lo fisicamente. Quanto mais esse significado será confirmado quando ambos phagô, e sua contraparte mais gráfica trôgôn, forem usadas juntos nos versos restantes?! Se a intenção de João era fazer com que Jesus transformasse phagô em metáfora, ele poderia facilmente tê-la seguido por uma palavra diferente de trôgôn, pois havia muitas maneiras de criar um significado simbólico na língua grega, e até mesmo em aramaico, que é provavelmente a língua que Jesus falou.[25]

JOÃO 6: 59-71

RAZÕES PARA DESCRENÇA NA PRESENÇA REAL

Lemos em João 6:60: “Ao ouvi-lo, muitos dos seus discípulos disseram: ‘Este é um ensino difícil. Quem pode aceitar isso?” Jesus responde: “Isso te ofende?” A expressão grega significa “isso te engana?” ou “é fatal para você?” Novamente, este é o clímax do relato. Agora os participantes devem decidir se irão seguir Jesus ou rejeitá-lo. Enquanto eles estão tomando sua decisão, Jesus não os mima. Consciente de seus resmungos, continua ainda mais estridente, fazendo-lhes a sublime pergunta: “E se vocês virem o Filho do Homem subir para onde estava antes!” O propósito desta declaração é para que Jesus possa completar o quadro de Sua missão divina. Ele desceu do céu (vs. 33, 50); levanta pessoas no último dia (vs. 39, 40, 44, 54); dá Sua carne e sangue para comer e beber (vs. 51-58); e então sobe de volta ao céu (v. 62). Tendo em mente que estas eram as mesmas pessoas que, no dia anterior, testemunharam Jesus alimentar cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes, e testemunharam os milagres anteriores de Jesus curar os enfermos, essencialmente Jesus está dizendo: “Eu já te disse tudo sobre mim e ainda vocês não acreditam. Se eu fosse um homem comum, não poderia fornecer nenhuma das coisas que reivindico. Mas eu fui enviado do céu. Eu sou o filho de Deus. Vai demorar minha ascensão de volta ao céu na frente dos seus próprios olhos para vocês acreditarem? Mas então, é claro, irei embora e não poderei mais ajudá-lo.” No v. 63 Jesus diz: “O Espírito vivifica, a carne não vale nada. As palavras que eu disse a vocês são espírito e são vida.” Isso é afirmado em resposta à própria pergunta de Jesus. Em outras palavras, para a pergunta: “Será necessário que eu suba de volta ao céu para que você acredite?” É respondido: “Não, você não vai acreditar, mesmo se eu ascender de volta ao céu”. Milagres não fazem as pessoas acreditarem. Só o Espírito, que atua nos recônditos secretos do coração e que é conduzido pelo Pai a chamar Seus escolhidos é instrumental na crença.

Muitos oponentes, não aceitando a interpretação católica, afirmam que na referência de Jesus ao “Espírito” Ele está ensinando que as palavras de João 6:54-58 devem ser interpretadas simbolicamente, e aqueles que insistem em um significado literal estão recorrendo à interpretação “carnal.”[26] Primeiro, tais acusações não podem ir adiante, visto que os oponentes não provaram primeiro que João 6:54-58 deve ser entendido simbolicamente. Em segundo lugar, o Novo Testamento nunca usa “Espírito” em um sentido simbólico, seja ao se referir ao “Espírito Santo” ou a qualquer outra coisa designada como “espírito.” Terceiro, Cristo não disse: “Minha carne é espírito”, para entendê-Lo em um sentido simbólico. Em vez disso, Ele disse: “Minhas palavras são espírito e vida.”

A razão pela qual Jesus usa “espírito” em João 6:63 é que o Espírito Santo dá vida e, portanto, leva o indivíduo a uma mudança de vida que abre a mente, a compreensão das palavras de Jesus (Jo 3:6-8).[27] Em todo o discurso, Jesus fala sobre a Vida: “vida eterna” (v. 27); “Dar vida ao mundo” (v. 33); “Vida eterna” (v. 47); “Viver para sempre” (v. 51); “Vida do mundo” (v. 51); “A menos que você coma… não há vida” (v. 53); “Vida eterna” (v. 54); “Viverá” (v. 57); “Viver para sempre” (v. 58). É óbvio que o principal o tema de João 6 é “vida”. Jesus afirma quatro vezes que “os ressuscitará no último dia” (v. 39, 40, 44, 54), pois a vida a que Ele se refere é, em última análise, a vida eterna. É o Espírito que dá vida, agora e na eternidade. Portanto, as pessoas não podem entender as palavras de Jesus, a menos que sejam guiadas pelo Espírito.

No entanto, o Espírito, de acordo com Jesus, é dirigido pelo Pai para dar vida àqueles que Ele escolheu. Jesus ensinou esta verdade nos vs. 37 e 44, e o reitera novamente no v. 65: “É por isso que eu te disse que ninguém pode vir a mim a menos que o Pai o capacite.” No entanto, não é como se o Pai escolhesse arbitrariamente a quem Ele dará o Espírito. Jesus é igualmente claro que a decisão do Pai também depende da vontade do povo (vs. 35, 40, 47, 51, 68) – uma relação dinâmica entre Deus e o homem que é um tema consistente no evangelho de João (cf. Jo 1: 12-13; 3: 5-21; 8: 42-47; 10: 1-10; 15: 1-6).

Além do movimento do Espírito, Jesus também diz: “…a carne não vale nada.” Novamente, alguns afirmam que, em tal frase, Jesus está descartando uma interpretação literal de Suas palavras em João 6:54-58. O problema óbvio com tal afirmação é que o v. 63 não está discutindo a carne e o sangue de Jesus, mas sim a descrença dos judeus que foi introduzida nos v. 60. Portanto, visto que a descrença dos judeus está na mesma proximidade textual que a declaração “a carne não vale nada”, a primeira deve de alguma forma explicar o significado da última. Na verdade, há uma interação de palavras. Jesus mencionou Sua carne em todo o contexto (vs. 51-56), que, pelo poder do Espírito, dá vida. Essa verdade Ele agora contrasta com a “carne” dos judeus, que está em morte espiritual porque eles se recusam a permitir que o Espírito lhe dê vida. Jesus diz a eles que, se desejarem, também podem se beneficiar do movimento do Espírito, uma vez que “as palavras que eu disse a vocês são espírito e são vida.”[28]

O contraste de Jesus entre espírito e carne não é diferente de outras instâncias no evangelho de João. Por exemplo, Jo 1:13 fala de “a vontade da carne” não tendo poder em si mesma para se tornar um filho de Deus, pelo contrário, aqueles que se tornam assim são “nascidos de Deus”. Jesus disse aos judeus a mesma verdade em Jo 6:37, 44, 65, ou seja, é somente por meio da liderança de Deus que alguém entende Jesus e vem a Ele. Da mesma forma, em Jo 3:6, a fim de explicar como alguém nasce de novo, Jesus contrasta a carne com o Espírito, afirmando: “Ninguém pode entrar no reino de Deus se não nascer da água e do Espírito. A carne dá à luz à carne, mas o Espírito dá à luz o espírito.” Aqueles que vivem na carne sem a animação do Espírito não podem possuir ou compreender as coisas do Espírito. Seguindo o padrão em Jo 1:13 e 6: 37-65, Jesus explica em Jo 3:8 que o Espírito decide onde e quando Ele vai trazer alguém para o reino, mesmo que o vento sopre onde lhe agrada. João 8:15, outra instância em que pessoas incrédulas questionam a identidade e as reivindicações de Jesus, registra Jesus dizendo aos fariseus, “julgais segundo a carne”, mostrando que Jesus entende a “carne” como representante da incapacidade de interpretar corretamente, não que devamos interpretar referências à carne de Jesus simbolicamente. Mais tarde, em Jo 8:47, Ele diz: “Aquele que pertence a Deus ouve o que Deus diz. A razão pela qual você não ouve é que você não pertence a Deus.” Só a carne vivificada pelo Espírito pode entender as coisas de Deus.[29] Podemos entender, então, por que João 6:66 registra este triste fato: “A partir dali, muitos de seus discípulos voltaram atrás e não o seguiram mais.”[30]


[1] Veja a obra do protestante C. K. Barrett em The Gospel According to St. John, pp. 69-71 para corroboração desta evidência. Certas características do relato de João se distinguem dos relatos sinópticos. Por exemplo, onde os Sinópticos descrevem os discípulos distribuindo comida para alimentar 5000, em João isso é feito pelo próprio Jesus. Enquanto Mateus e Marcos registram Jesus dando uma “bênção” ao céu (grego: euloghsen), João diz que ele “deu graças” (Grego: euxaristhsa, português: eucaristia), assim como Lucas. João enfatiza que os fragmentos de pão são recolhidos para que nada seja desperdiçado, enquanto os Sinópticos, não. Essa ênfase é comum ao evangelho de João (cf. Jo 3:16; 6:39; 10:28; 17:12; 18: 9).

[2] O protestante J. White declara: “Jesus utiliza este tipo de simbolismo dualístico em todo este discurso, referindo-se à realidade física do maná para representar a realidade espiritual da fé Nele. Essa dualidade não foi percebida pela Igreja Católica Romana, que lê na passagem a doutrina da transubstanciação na Missa – e, ao fazer isso, inverte a direção que o Senhor está tomando com a conversa. Eles, como os ouvintes do primeiro século, não podem ver além do símbolo para a realidade além” (The Roman Catholic Controversy, op. Cit., P. 169). Ao contrário da avaliação de White, a Igreja Católica não apenas reconhece dois tipos distintos de linguagem no discurso, ela também sabe quando as distinções começam, quando param e por que o fazem. Além disso, os oponentes da presença substancial de Cristo na Eucaristia mostram tendências do pensamento gnóstico, em que a matéria é desvalorizada, considerada não espiritual e vista com suspeita, e cujos proponentes afirmam possuir “conhecimento secreto”, ou gnose, das coisas espirituais para determinar tais distinções.

[3] Não reconhecendo ou aceitando essas distinções, os oponentes baseiam seu caso em João 6:35. O apologista protestante Robert Zins declara categoricamente: “Cremos que o versículo controlador de João 6 é o versículo 35” (Romanism, p. 117). Basta dizer que este é precisamente o problema com a hermenêutica protestante a respeito de João 6 – uma hermenêutica que arbitrariamente escolhe um versículo para ser o verso governante ou dominante para todo o capítulo. Uma vez que tal decisão é tomada, ela infecta a interpretação de todo o capítulo, mas simplesmente não há justificativa para colocar tal peso em João 6:35 com a exclusão de outros versículos.

[4] Grego: didwsin = “dar” (presente indicativo).

[5] cf. Jr 31:33-34; Hb 8:10-12; 10:16-17.

[6] cf. Rm 2:28-29; 3:28.

[7] A frase idêntica: Ἐγώ εἰμι ὁ ἄρτος τῆς ζωῆς·(“Eu sou o pão da vida”) aparece nos vs. 35 e 48, e assim se torna o marcador mais proeminente de duas seções separadas na narrativa. As duas seções, vs. 35-47 e vs. 48-58, têm construção paralela em seus pontos principais: (a) a declaração de que Jesus e o pão vêm do céu; (b) a disputa dos judeus; (c) a repreensão de Jesus e, (d) a reiteração de que aquele que crê e come tem vida eterna e será ressuscitado no último dia.

[8] A primeira aparição de “comer” (v. 50) é o subjuntivo aoristo de fagw, usado também em Jo 6,52,53,58. “Viver” é a forma participial de zwn usada também como um particípio em Jo 6,57,69; enquanto “carne” é uma tradução de σάρξ e aparece em Jo 6:51, 52, 53, 54, 55, 56, 63. O versículo 51 é introduzido com de, marcando uma nova e diferente linha de pensamento. Também significativo é o enfático egw dwsw (“Eu irei dar”) no v. 51, indicando uma diferença entre o que o Pai dá e o que Jesus dá, e que, pelo uso do tempo futuro (δώσω), é um presente que Jesus ainda não deu. Notamos também que a fraseologia de Jo 6,51: “Este pão é a minha carne, que darei pela vida do mundo” é muito semelhante a Lc 22,19: “Este é o meu corpo dado por vós”, sugerindo que João está tentando tornar sua linguagem litúrgica. A reintrodução do “pão da vida” nos v. 51 move Rudolph Bultmann a postular que os vs. 51-58 são uma redação de um autor diferente de João que desejava introduzir um tema sacramental (The Gospel of John, pp. 70, 234). Raymond Brown concorda, mas sugere que a redação foi feita pelo próprio João (The Gospel according to John, p. 300). Estamos fazendo a exegese do texto como está no original de João 6, colocando o ônus da prova sobre aqueles que postulam qualquer outra forma de redação. No entanto, os comentários de Bultmann são valiosos, uma vez que, ao empregar uma metodologia histórico-crítica, ele pode simplesmente descartar a passagem como uma redação estrangeira, enquanto os conservadores protestantes frequentemente recorrem à supressão ou distorção de quaisquer características da passagem que se inclinem para uma compreensão literal/substancial das palavras de Jesus. Não devendo lealdade a nenhum dos lados, a exegese histórico-crítica imparcial (do tipo de Bultmann) acaba apoiando a posição católica. Sobre João 6:54-58, Bultmann escreve: “Por outro lado, a ofensa é intensificada nos v. 54 pela substituição do mais forte trwgein por fagein. É uma questão de comer de verdade e não simplesmente algum tipo de participação espiritual. Portanto, há todas as indicações de que o v. 55 deve ser interpretado desta forma. É realmente assim! A carne de Jesus é comida de verdade e seu sangue é bebida de verdade! Todos os outros alimentos só podem dar vida aparente, mas não realmente; só o sacramento é alimento real, verdadeiro, pois dá vida; No v. 58 ele assegura a seus leitores pelo outoς estin [“isto é”] que este pão milagroso é de fato o sacramento da Ceia do Senhor;  outoς aqui não aponta para a frente como no v. 50, mas se refere aos vv. 51b-57; não define, mas identifica” (ibid., 236-237). Comentando os versículos 53-54, o gramático protestante C. K. Barrett concorda: “À declaração sobre a carne do Filho do homem é adicionado kai piete autou to aima. Isso aponta inequivocamente para a eucaristia. Nenhum pensamento substancialmente novo é adicionado neste versículo, embora a menção paralela de carne e sangue pareça confirmar a referência à eucaristia” (The Gospel According to Saint John: An Introduction with Commentary and Notes on the Greek Text, p. 247).

[9] Cf. 1Jo 1:7; Hb 9:14; Ap 7:14; 1Pe 2:24.

[10] Existem várias palavras para “comer” no Novo Testamento: βεβρωκόσιν(Jo 6:13); βρώσεως(1Co 8: 4); γεύομαι(At 10:10); εσθιό (Mt 26:26); συνεπίο(At 10:41); φάγo (que é um derivado de εσθιό , Jo 6:31); katafagw (Jo 2:17); τρώγω(6: 54-58), e várias palavras para “beber”: πινέτω(Jo 7:37); ποτίσo(Mt 25:42); sumpinw (At 10:41), mas o Novo Testamento nunca usa nenhum delas em uma ordem ou declaração para comer a carne e beber o sangue de Cristo. Somente em João 6 existe tal comando. João limita sua escolha de palavras a fagw (aoristo de εσθιό ) e τρώγω , sendo esta última a única palavra do Novo Testamento para se referir à mastigação em oposição à alimentação geral, e que Jesus usa em suas declarações mais enfáticas nos vs. 53-58.

[11] Uma das razões pelas quais Deus ordenou aos judeus que se abstivessem de sangue é que ele continha vida. Levítico 17:14 declara: “porque a vida de toda criatura está no sangue. É por isso que eu disse aos israelitas: Não deves comer o sangue de nenhuma criatura, porque a vida de cada criatura é o seu sangue…” A razão espiritual para esta ordem é que os judeus estavam sob a Antiga Aliança que não tinha o poder de conceder vida. O sangue era necessário para o sacrifício a fim de obter apaziguamento temporário de Deus, mas não podia trazer vida (Romanos 7:10). Da mesma forma, após seu pecado no Jardim do Éden, Deus proibiu Adão e Eva de comer da árvore da vida, mas permitiu que eles sacrificassem animais para cobrir sua nudez, uma representação do sangue derramado por seus pecados. Na Nova Aliança, Jesus derramou Seu sangue com o propósito de perdoar os pecados de Adão e Israel (Mt 26:28), tornando apropriado que bebamos o sangue da vítima para receber a vida (Jo 6:53-58). Da mesma forma, aqueles que são membros da Nova Aliança comerão mais uma vez da árvore da vida (Ap 22:2).

[12] Karl KeatingCatholicism and Fundamentalism, p. 241.

[13] Ludwig Ott acrescenta: “Não há nada no texto para apoiar uma interpretação figurativa; pois por sua natureza pão e o vinho não são símbolos de corpo e sangue, pelo uso da linguagem comum. A interpretação literal não envolve nenhuma contradição intrínseca, embora pressuponha fé na Divindade de Cristo” (FCD, p. 375).

[14] Robert Zins objeta: “Somos lembrados de que quando nosso Senhor disse: ‘Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei’ (Jo 2:19), os judeus tinham certeza de que Ele estava se referindo ao Templo e tomaram Jesus literalmente e ficaram enojados! Até onde sabemos, o Senhor não corrigiu seu literalismo crasso. Aqueles que pensaram que Jesus estava ensinando como comer dele fisicamente estavam perdendo o ponto que ele queria ensinar!” (Romanism, p. 118). É verdade que Jesus não corrigiu o “literalismo crasso” dos judeus, mas sua razão para fazer isso foi devido à recusa total dos judeus em aceitar qualquer coisa que Jesus dissesse sobre si mesmo. Os judeus de João 2 foram cegados pelo pecado e se recusaram a se submeter a Deus, o que é o mesmo no caso dos judeus em João 6 (vs. 37, 44, 65). Assim como os judeus de João 6, por causa de sua descrença, interpretaram incorretamente Jesus como ensinando um canibalismo “crasso”, os judeus de João 2 não puderam ir além do templo de pedra como o objeto das observações de Jesus em João 2:19. Independentemente de sua descrença, no entanto, Jesus está se referindo a um templo literal em João 2:19. Esta interpretação é confirmada em Jo 2:21: “Mas o templo de que ele falou era o seu corpo”. O templo pode ser usado de duas maneiras diferentes, mas relacionadas, ambas literais (cf. 1Co 6:19; Rm 8: 9-11, em que os cristãos são “templos do Espírito Santo”). O corpo de Jesus é um templo literal, o que é confirmado em Jo 2:22: “Depois que ele ressuscitou dos mortos, seus discípulos se lembraram do que ele havia dito. Então eles acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus havia falado.” Um templo figurativo não foi erguido, ao contrário, era o corpo literal de Jesus. Da mesma forma, João 6 tem dois usos literais de ‘coma minha carne e beba meu sangue’. O primeiro é o ‘literalismo crasso’ dos judeus, que conclui que Jesus pretende que os judeus rasguem um pedaço de Sua carne e consumam (isto é, canibalismo). O segundo é um literalismo santificado, que entende Jesus falando sobre comer e beber Sua carne e sangue sacramentais. No momento Jesus em que está ensinando sobre a Eucaristia em João 6, Ele não espera que as pessoas, incluindo os Apóstolos, entendam a forma precisa que sua carne e sangue irão assumir, no entanto, Ele exige que eles aceitem Seu ensino. Os Apóstolos acreditam, como confirma Jo 6,68, mas não teriam plena consciência de como a Eucaristia se manifestaria até que fossem cheios do Espírito Santo (cf. Lc 24,5-8,25-27; Jo 12:16; 14:26; 1Co 11: 24-26). A mesma diferença entre ‘literalismo crasso’ e literalismo santificado aparece em Jo 3:1-4:2, quando Nicodemos interpreta o ensino de Jesus sobre ‘nascer de novo’ de maneira bastante crassa e, portanto, reclama que ele não pode cumprir o mandamento de Jesus, uma vez que é impossível entrar uma segunda vez no ventre de sua mãe. Idêntico aos relatos de João 2 e João 6, Jesus não corrige diretamente o literalismo “grosseiro” de Seu inquiridor, ao contrário, Ele reforça Seu ensino anterior. No caso de Nicodemos, Jesus redireciona a investigação e explica que a literalidade que Ele pretende é que o homem receba água e o Espírito, o que é imediatamente e literalmente demonstrado em Jo 3:22 e 4:1-2 quando Jesus e Seus discípulos batizam com água as pessoas do interior da Judéia. Depois, os apóstolos entendem que o batismo nas águas é coincidente com o recebimento do Espírito Santo (At 2:38), o mesmo que Jesus ensinou em Jo 3:5. Da mesma forma, os apóstolos começariam a entender como o “comer da carne e beber do sangue” de João 6 deveria ser literalmente aplicado quando eles participassem da Ceia Eucarística, conforme registrado nos evangelhos sinópticos.

[15]Ludwig Ott acrescenta: “Cristo teve que se adequar à compreensão mental de Seus apóstolos, que entenderam Suas palavras à medida que eram pronunciadas. Para evitar o perigo de enganar a humanidade, na instituição de tão sublime Sacramento e ato de adoração, no próprio momento de sua fundação da Nova Aliança e na composição de Seu Testamento, Ele teve que empregar uma forma de discurso que não poderia estar enganado” (FCD, p. 375). E. Svendsen objeta: “Os apóstolos teriam mais naturalmente interpretado as palavras de Jesus simbolicamente. Para ilustrar este ponto, suponha que alguém que toca em uma sinfonia segurasse seu violino e proclamava para o público: “este é meu braço direito.” Como os presentes interpretariam essa afirmação – literal ou simbolicamente? Não seria suficientemente claro para eles que, uma vez que o braço direito do homem ainda estava intacto, ele deve estar falando simbolicamente?” (Evangelical Answers, p. 240). Postulamos que o exemplo do violinista de Svendsen é inadequado, uma vez que, ao contrário da Última Ceia e eventos relacionados, o violino: (1) não tem ambiente litúrgico; (2) nenhum tipo do Velho Testamento profetizado (por exemplo, Malaquias 1:10-11); (3) sem antítipos contínuos (Ap 5:6); (4) nenhuma comunhão íntima (Ef 5:31-32); (5) nenhuma afirmação repetida de sua importância (por exemplo, seis referências à Eucaristia aparecem no Novo Testamento, sob os mais solenes e portentosos conselhos (cf. 1Co 11.29-30; Jo 6.53); (6) nenhuma pessoa divina que tenha a capacidade de transformar suas palavras em realidade (ou seja, Jesus é Deus, o violinista não); (7) nenhum reconhecimento de que a Eucaristia é uma prática histórica ininterrupta (uma que existe na Igreja Católica, sem desvio, há dois mil anos); (8) nenhuma declaração de testemunhas antigas de tal interpretação (ou seja, mais de três dúzias de Pais da Igreja expressam explicitamente sua crença na presença substancial de Cristo na Eucaristia); e (9) nenhuma autoridade dogmática para julgar o significado de seu significado (cf., 1 Timóteo 3:15).

[16] Autores protestantes, N. Geisler e R. MacKenzie, afirmam: “Ele disse, ‘Eu sou a porta’ e ‘Eu sou a videira’ e os estudiosos católicos romanos não interpretam essas declarações literalmente, embora elas venham do mesmo livro que registra ‘Este é o meu corpo’”! Portanto, não é necessário interpretar Jesus literalmente quando ele disse ‘Este é o meu corpo’ ou ‘coma minha carne.’ Jesus frequentemente falava em parábolas e figuras gráficas, como ele mesmo disse (Mt 13:10-11). Como veremos, essas declarações podem ser entendidas a partir do contexto” (Roman Catholics and Evangelicals: Agreements and Differences, p. 262). O protestante J. White escreve: “Todos entendem que Jesus está falando figurativamente, e o significado óbvio e literal da passagem é aquele que reconhece o simbolismo da linguagem usada” (The Roman Catholic Controversy, op. cit., p. 167). O protestante Dave Hunt se opõe por um motivo diferente: “Para provar que estava vivo, Ele disse: ‘Segure-me e veja, porque um espírito não tem carne e ossos (não ‘carne e sangue’), como vedes que eu tenho [Lucas 24:39]; não há sangue em seu corpo. O sangue é a vida da carne mortal, e o sangue de Cristo foi derramado na cruz pelos nossos pecados. No entanto, diz-se que o vinho se tornou o sangue de Cristo sobre os altares católicos” (The Roman Catholic Church and the Last Days: A Woman Rides the Beast (pp. 372-373). O uso de Lc 24:39 por Hunt não prova seu caso. O versículo não nega que Jesus tenha sangue em Seu corpo ressuscitado. Na verdade, a única razão pela qual Jesus especifica “carne e ossos” é que Ele pediu aos apóstolos que o “vissem e tocassem.” A carne pode ser vista e os ossos podem ser sentidos, mas não se pode ver nem sentir o sangue quando está no corpo, portanto, o sangue é deixado de fora do convite. Além disso, nenhuma outra Escritura nega que o corpo ressuscitado de Cristo contém sangue, nem especifica a verdadeira composição de Seu corpo. Além disso, nenhuma Escritura declara que uma vez que Cristo derramou Seu sangue na cruz, Ele não pode mais ser constituído com sangue em um corpo ressuscitado.

[17] Thomas Howard acrescenta estas palavras perspicazes: “Muitos cristãos rejeitam a promessa eucarística de Cristo com uma piada sobre Ele não ser uma porta literal, embora dissesse: ‘Eu sou a porta’, supondo que assim tenham dissipado o mistério da Eucaristia. Vinte séculos de testemunho cristão não têm peso para eles. A mente humana, e talvez especialmente a mente “espiritual”, tem uma suspeita profunda de qualquer coisa que realmente faça a ponte entre o espírito e a matéria. O espírito é material e não deve nunca vir sobre o assunto, mesmo que apenas isso pareça ter acontecido na Anunciação, com os resultados mais flagrantes” (Evangelical is Not Enough, pp. 108-109).

[18] Na literatura clássica grega, trôgô se referia ao ato de mastigar, roer, mastigar, mordiscar ou morder e, às vezes, com o significado geral de devorar (Liddell e ScottGreek English Lexicon, Oxford University Press, 1871; Walter BauerGreek English Lexicon of the New Testament, University of Chicago Press, 1979). Bauer menciona a escrita de Aristófenos do século V a.C em que a expressão “o trwgwn mou ton a[rton” (“aquele que come meu pão”) e a escrita de Políbio do século II a.C, “duo trwgomen adelfoi” (“dois irmãos comem”) são exemplos que ilustram camaradagem. O protestante W. E. Vine, em An Expository Dictionary of New Testament Words, p. 346, tenta o mesmo com os outros dois usos de trwgw no Novo Testamento, isto é, Mt 24:38 (“Pois naqueles dias antes do dilúvio, as pessoas comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia Noé entrou na arca”); e Jo 13:18 (“Aquele que comia o meu pão ergueu o calcanhar contra mim”), do qual Vine diz do primeiro, “de uma prática que envolve indevidamente o mundo”, e do último , “… do constante costume de comer em certa companhia…” Quanto a Mt 24:38, a definição de Vine de trwgw é imprecisa; trwgw não pode ser descartado como uma mera metáfora, apelando para as imagens ao redor, mais do que “casar e dar em casamento”, que aparece no mesmo versículo, poderia se referir a algo diferente de pessoas literalmente se casando. Tomado literalmente, o uso de trwgw de Mt 24:38 refere-se a uma refeição ou jantar íntimo em que a pessoa participa suntuosamente de comida e bebida, a ponto, talvez, de ficar alheio aos acontecimentos externos. É uma troca íntima de comida e bebida onde os comensais saboreiam a refeição juntos, o que geralmente é feito com mastigação meticulosa. Visto que trwgw se refere a tal participação suntuosa e pessoal, pode ser usado em casos em que a intimidade faz parte da refeição. Esse é o caso com o uso de trwgw em Jo 13:18, no qual Jesus comenta sobre a ironia de seu traidor compartilhar uma refeição íntima com ele. Judas não estava comendo simbolicamente com Jesus, ao contrário, como o versículo companheiro de Mt 26:23 deixa claro (“Aquele que mergulhou a mão na tigela comigo me trairá”), Judas estava participando ativamente da refeição. A única metáfora em João 13:18 é o ditado “ele levantou o calcanhar contra mim”, que em uma comparação com o relato de Mateus, se refere à traição. Assim, trwgw não apenas denota uma mastigação literal de comida, mas também denota a participação íntima de uma refeição suntuosa, uma definição que também se encaixa bem com o que Jesus está tentando estabelecer em seu diálogo com os judeus em Jo 6:54-58. Não apenas devem comê-Lo, mas saborear cada pedaço de Sua divina presença. Portanto, é claro que trwgw em Mt 24:38 e Jo 13:18 se refere ao ato de comer fisicamente, não uma metafórica ou comer simbólico, o que também é verdadeiro para as referências a trwgw na literatura grega de Políbio e Aristofenos.

[19] Em cada caso, trwgw é precedido pelo artigo definido, na forma de particípio presente, ó trwgw (“aquele que come”), uma ênfase que dá atenção especial ao indivíduo – um indivíduo que toma uma decisão consciente de mastigar a carne de Cristo, em oposição à massa de pessoas ao redor de Jesus que estão em descrença quanto à sua proposição. A individualidade da decisão é intensificada no v. 57 que acrescenta, kakeinoς (“aquele que me comer, este mesmo, viverá por minha causa”). Como mostra o contexto, o indivíduo é conduzido a esta decisão depois de ser individualmente atraído pelo Pai (cf. Jo 6,37,44,65). A evidência da “atração” do Pai se tornaria aparente inicialmente pela crença na Pessoa de Jesus.

[20] Ver nota de rodapé 18.

[21] Das 98 vezes que fagw aparece no Novo Testamento, apenas em uma, possivelmente duas instâncias é usado simbolicamente, cf. Jo 4:32-34; 1Co 10:3, exceto no último caso o maná e a água foram fisicamente comidos e bebidos pelos israelitas, para que São Paulo chamar de “espirituais” apenas porque o maná e a água foram dados diretamente do céu.

[22] Ignorando essa distinção, o protestante E. Svendsen distorce a sequência específica do uso das palavras em João 6. Ele escreve: “(v. 35) Não pode haver dúvida de que o que Jesus quis dizer com ‘comer’ e ‘beber’ era vir a ele e crer nele. Isso é ainda mais evidente a partir do v. 47: ‘Em verdade vos digo, quem crê tem a vida eterna’, que é imediatamente seguido por: ‘Eu sou o pão da vida. Seus pais comeram o maná no deserto, mas morreram. Mas aqui está o pão que desce do céu, que o homem pode comer e não morrer” (vs. 48-50). Mais uma vez, Jesus equipara “comer” a acreditar nele. Esta crença resulta em vida eterna: ‘Porque a vontade de meu Pai é que todo aquele que olhar para o Filho e crer nele [note, desta vez não ‘coma’ e ‘beba’ dele] terá vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia (v. 40)” (Evangelical Answers, pp. 244-245). Notamos dois erros: (1) Svendsen diz que “comê-lo” se refere a “acreditar nele”, o que implica uma crença corolária de que (a) aqueles que tentarão comê-lo fisicamente (isto é, sacramentalmente) significa que eles não acreditam nele espiritualmente, e (b) que Jesus está limitando o significado de “comê-lo” para crer nele espiritualmente. Ambas as afirmações de Svendsen são mera conjectura. (2) Svendsen justapõe o v. 40 com o vs. 48-50, fazendo parecer, por seu comentário “[observe, desta vez não ‘come’ e ‘bebe’]”, que na sequência lógica, o pensamento do v. 40 vem depois do pensamento dos vs. 48-50. Mostramos acima que o v. 40 está contido na primeira seção do ensino de Jesus, que trata o pão como um símbolo de Sua descida do céu. No entanto, também mostramos que vs. 48-53 começam uma segunda seção que, ao contrário da primeira seção, incorpora terminologia sacramental específica (viz., “Comer”, “carne”, “beber” e “sangue”). Svendsen ignora essas distinções e, portanto, distorce o texto a seu favor. Svendsen tenta outra crítica. Ele escreve: “…a palavra grega usada em João 6 para designar o que devemos comer é sarx (σάρξ; traduzido por ‘carne’), enquanto a palavra grega usada nos textos da Última Ceia é sempre sôma (swma; traduzido por ‘corpo’). As diferenças entre essas palavras sugerem que, se for feita uma conexão entre João 6 e a Eucaristia, ela deve, na melhor das hipóteses, uma ideia perdida. Isso se encaixa bem com a compreensão simbólica de João 6” (ibid., pp. 247-248). Enquanto Svendsen ignorava as distinções nas palavras do texto, no presente caso ele tenta empregar as distinções a seu favor, mas essa tentativa também falha. Por que? Porque há vários exemplos no Novo Testamento onde σάρξ e swma são intercambiados (por exemplo, Rm 7: 24-25; 8:13; 1Co 6:16; 10: 17-18; 2Co 4:10-11; Ef 5:28-30; e Cl 2:23). Ao contrário da proposta de Svendsen, a única razão pela qual Jesus usa “carne” em vez de “corpo” em João 6 é que o primeiro é o mais específico dos dois ao denotar a constituição física de um ser humano, portanto, é o mais apropriado para uso em João 6, pois Jesus está tentando convencer os judeus de que é literalmente Sua carne em vista, não qualquer outro tipo de corpo (1Co 15:44). Svendsen tenta outro argumento. Ele escreve: “Terceiro, se alguém insiste que João 6 é uma referência à Eucaristia, então a conclusão inevitável de acordo com esta passagem é que quem não participa da Eucaristia não tem vida eterna. Cristo afirma inequivocamente que “a menos que você coma a carne do Filho do Homem e beba seu sangue, você não tem vida em você” (ibid., p. 248). No entanto, o contexto de João 6 está falando claramente sobre aqueles que deliberadamente se recusam a aceitar o ensino de Jesus, não aqueles que são ignorantes de seu ensino (cf. Jo 6,36, 64-66, 70). No caso deste último, a Igreja diz que Deus é maior do que Seus sacramentos e, portanto, não está limitado por eles (CIC §1247).

[23] Faghte  é um subjuntivo aoristo na cláusula condicional estabelecida por ean me (“a menos que”).

[24] efagon is the aorist indicative of fagw

[25] Neste caso, repetimos uma nota de rodapé anterior a respeito do estudo concluído em 1828 pelo Cardeal Nicholas Wiseman, intitulado Horae Syriacae, que catalogou nada menos que quarenta expressões siríacas transmitindo o significado de “significar”, que se qualquer uma delas fosse usada por Jesus, então, teria que ser traduzido para o grego por uma palavra simbólica correspondente. O cardeal católico do século XVII, Robert Bellarmine, observa que se na mente de Cristo o maná era uma figura da Eucaristia, a Eucaristia deve ter sido algo mais do que meramente pão abençoado, caso contrário, o protótipo (isto é, a Eucaristia) não seria substancialmente exceder o tipo (De Eucharisto I, 3).

[26] N. Geisler e R. MacKenzie afirmam: “Jesus repreendeu o entendimento deles, pelo menos implicitamente, quando disse mais tarde no mesmo discurso: ‘É o espírito que dá vida, enquanto a carne não adianta. As palavras que vos disse são espírito e vida (Jo 6:63). Tomando emprestada uma frase de Paulo, as palavras de Jesus devem ser ‘julgadas espiritualmente’ (1Co 2:14; cf. Mt 16:17), não em um sentido físico grosseiro” (Roman Catholics and Evangelicals, op. cit., p. 262). Geisler e MacKenzie caem na mesma armadilha que muitos outros, pois confundem “espiritual” com “simbólico”. O uso de São Paulo de “julgado espiritualmente” em 1Co 2:14 não está em um contexto que distingue a interpretação literal da interpretação simbólica; antes, distingue o homem natural que não entende Deus do homem espiritual que entende (isto é, aquele cheio do Espírito do versículo 1Co 2:13). Portanto, é tão apropriado dizer que aquele que “julga espiritualmente” é aquele que vê uma interpretação literal das palavras de Jesus em Jo 6: 53-58, visto que “julgar espiritualmente” não significa “julgar simbolicamente”. Do contrário, se seguíssemos a tese de Geisler e MacKenzie até sua conclusão lógica, não poderíamos interpretar nada literal e fisicamente sobre Cristo, incluindo Sua morte, ressurreição e segunda vinda. De uma perspectiva mais ampla, a objeção de Geisler e MacKenzie apenas levanta a questão: pois quem deve decidir quando uma passagem é simbólica e quando é literal, sabendo que a Escritura usa ambas as formas de linguagem? Geisler e MacKenzie presunçosamente se declaram melhores em “julgar espiritualmente” do que aqueles mais próximos dos apóstolos, ou seja, os primeiros Pais e concílios da Igreja, cujas evidências preponderantes discordam deles. Os autores replicam: “…Trento fala do ‘consentimento unânime dos Pais’ como o meio de determinar a verdadeira tradição apostólica. Mas alguns Pais se opuseram claramente à ideia de tomar literalmente a frase ‘este é o meu corpo’”(ibid., p. 263). Embora a palavra-chave em sua frase seja “alguns”, no entanto os autores não citam uma testemunha patrística para provar seu ponto, nem parecem estar cientes de que no dogma católico “consentimento unânime” não significa que todo Pai deveria concordar em todos os detalhes, especialmente antes que a doutrina da Eucaristia fosse dogmatizada no Quarto Concílio de Latrão mil anos depois. É um fato que nos primeiros séculos da Igreja não existe nenhuma evidência de qualquer Pai que questione a presença substancial de Cristo na Eucaristia, muito menos discordando quanto à sua realidade. Absolutamente nenhuma acusação de heresia foi feita contra qualquer um dos Pais por acreditar na presença substancial, o que não seria o caso se fosse considerada uma falsa doutrina. Como veremos na Parte III, mesmo os Padres que adicionaram uma aplicação espiritual a Jo 6:54-58 nunca negaram a interpretação literal dos versos (por exemplo, Agostinho, Tertuliano, et al). O protestante W. Webster levanta outra objeção: “…ele [Jesus] deixa claro que suas palavras deveriam ser interpretadas espiritual e figurativamente: ‘A carne para nada aproveita; as palavras que vos disse são espírito e são vida’ (Jo 6,63). Este discurso não poderia se referir à Ceia do Senhor, pois Cristo não tinha instituído essa ordenança na época em que deu este ensino. Ele não está falando aqui da eucaristia, mas do seu sacrifício no Calvário” (The Church of Rome at the Court of History, p. 130). Esta explicação usa lógica seletiva, pois se a premissa é que Jesus não poderia estar se referindo à Ceia do Senhor porque ela ainda não havia ocorrido, então Jesus também não poderia estar se referindo ao Calvário, pois ainda não havia ocorrido. A lógica consistente exige que a Ceia do Senhor e o Calvário sejam antecipados por João 6, mas nenhum dos dois fatos é negado.

[27] Usando um jogo de palavras, a cláusula to pneuma estin to zwopoioun (“o espírito é a [entidade] que dá vida” ou “o espírito é o que dá vida”) é uma referência indireta ao Espírito Santo, uma vez que: (a) o artigo definido precede “espírito”, portanto denotando a existência de uma personalidade (Jo 3: 5); (b) um segundo artigo definido substitui um pronome relativo, a saber “quem” ou “qual”; (c) o espírito realiza uma ação – dar vida, enquanto os conceitos espirituais não realizam ações. No entanto, o uso oblíquo, por sua vez, permite que a segunda referência a “espírito” (sem um artigo anterior) se torne o predicado nominativo de “as palavras” e, assim, se refira a uma qualidade de ser. O mesmo uso duplo do espírito é evidente em Jo 3: 6 (“o Espírito dá nascimento ao espírito”) ou Jo 4:24 (“Deus é espírito, e seus adoradores devem adorar em espírito e verdade”).

[28] Como disse Karl Keating com tanta propriedade: “Swaggart pensou que Cristo, que acabara de ordenar a seus discípulos que comessem sua carne, disse que isso seria inútil? É isso que significa “a carne não serve para nada”? ‘Coma minha carne, mas você vai descobrir que é uma perda de tempo’ – era assim que ele deveria ser compreendido? E os discípulos deveriam entender a frase “as palavras que tenho falado para você são espírito e vida” como nada mais que rodeio para ter um sentido “simbólico”? (Catholicism and Fundamentalism, p. 242). Como o luterano R. C. H. Lenski escreve: “Isso elimina o velho erro de que, quando Jesus diz: ‘a carne não aproveita nada’, ele inclui também sua própria carne. Fazendo isso, Jesus negaria todas as declarações sobre sua carne feitas em seu discurso anterior e afirmaria que quando ele diz ‘carne’, ele quer dizer exatamente o oposto, ou seja, ‘espírito’, transformando assim todo o seu discurso em um absurdo. A noção de que ‘espírito’ aqui significa o verdadeiro sentido espiritual das palavras de Jesus, e que ‘carne’ aqui significa o sentido carnal mantido pelos judeus, introduz figuras de linguagem onde nenhuma figura é indicada” (The Interpretation of the Gospel of Saint John, p. 511).

[29] A palavra grega para “carne” aparece em Jo 8:15 e Jo 1:13 e em todo João 6, é σάρξ (Veja também Rm 8: 4-13; Gl 5:17; Ef 2: 3; 2Pe 2:10-18). Para um excelente suporte da interpretação católica por um protestante qualificado, consulte Alasdair Heron em seu trabalho Table and Tradition, pp. 48-52. Heron declara: “Se parece confuso, como também pode, ter a palavra ‘carne’ de maneiras um tanto diferentes tão próximas, é, no entanto, precisamente o que podemos esperar do autor do Quarto Evangelho. Os mesmos usos diferentes podem ser encontrados ainda mais juntos em Jo 1:13-14, que primeiro compara ‘carne’ e nascimento a partir dela com o nascimento de Deus, então passa imediatamente a afirmar que o Verbo ‘se fez carne.’” Em seguida, atinge um ponto ainda mais significativo: “Aqui agora [vs. 48-58] a Eucaristia, que foi sugerida de várias maneiras no início do capítulo, está começando a vir mais obviamente à mente. Deste versículo em diante v. 58, as palavras de Jesus têm um duplo sentido: especifica-se a si mesmo e ao pão e vinho eucarístico. O autor [João], entretanto, nunca desvenda esses sentidos, nem mesmo deixa claro como eles se relacionam. Em vez disso, ele se baseia, como tantas vezes em seus escritos, no duplo sentido, reunindo diferentes significados em uma única afirmação que pode ser e se destina a ser tomada em mais de um nível”(ibid., p. 50). O duplo sentido de João pode explicar porque alguns dos Pais, particularmente Agostinho, têm uma interpretação espiritual e literal de Jo 6:54-58. Na verdade, o duplo sentido de João serve para negar a visão da Eucaristia como um alimento mágico que pode conferir benefícios pelo mero ato de comê-la. Para que haja qualquer benefício, é preciso primeiro acreditar em quem Jesus é. Só então a Eucaristia pode depositar sua graça especial na alma.

[30] Os protestantes N. Geisler e R. MacKenzie objetam: “Mas mesmo admitindo que Deus é a causa primária da transformação, os protestantes ainda se opõem à crença sacerdotal católica romana de que o sacerdote é uma causa secundária ou instrumento por meio do qual Deus realiza tal transformação. É contrário aos caminhos conhecidos de Deus revelados nas Escrituras conceder a qualquer criatura o poder de transformar uma criação (o pão e o vinho) no corpo real do Criador (Cristo). [f. 78] Enquanto Deus concedeu instrumentos humanos (por exemplo, Moisés, Elias e os apóstolos) o poder de fazer milagres, alguns dos quais transformaram água em vinho, não há evidência de que ele lhes tenha dado o poder de transformar o vinho no verdadeiro sangue do Filho de Deus” (Roman Catholics and Evangelicals, op. cit., p. 267). Como nas críticas anteriores, os autores não fornecem nenhuma evidência onde tal mandamento é negado nas Escrituras. Independentemente disso, seu argumento é totalmente anacrônico. A razão pela qual ninguém antes de Cristo recebeu a ordem de “transformar o vinho no verdadeiro sangue do Filho de Deus” é simplesmente porque o sacramento não foi, e não poderia ser instituído até que Cristo viesse. Consequentemente, o pão e o vinho oferecidos por Melquisedeque não foram transubstanciados no corpo e sangue de Cristo. Independentemente desses fatos, ficamos ainda mais intrigados com a lógica dos autores, uma vez que eles parecem não ter problemas em acreditar em um milagre tão tremendo e transformador da natureza como transformar água em vinho, mas hesitam profusamente quando falamos das dimensões de mudança da natureza da Eucaristia, especialmente à luz de seis passagens no Novo Testamento que especificam tal mudança, em oposição a apenas uma expressando a mudança de água em vinho.